quinta-feira, 2 de junho de 2016

"OCEANO COLIGIDO": NOTAS PARA UM PREFÁCIO


Prefácio à antologia poética
Oceano coligido (1980-2000), de Iacyr Anderson Freitas
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 7-11).

Fernando Fiorese


1. Para além de título desta antologia, a metáfora Oceano coligido diz da poética de Iacyr Anderson Freitas. Não é outro o empenho do poeta: coligir na simbólica do mar, das águas em movimento, a dinâmica da vida, o embate entre memória e esquecimento. Tanto no sentido próprio (recolher, juntar, reunir; contrair, apertar, estreitar) quanto nas suas múltiplas figurações (adquirir, obter, ganhar; concluir, deduzir; refletir em, passar pela memória, examinar; provocar, causar, sofrer), o étimo latino colligere destina esta obra coletânea aos riscos da ausência. O que afirma Ruy Espinheira Filho no prefácio a Lázaro (1995) – “São vários poemas – que também são, sem contradição, um só poema. Ou, se quiserem, vice-versa” – caracteriza todos os demais livros do autor, de forma que o ato de coligir (mesmo quando realizado por mãos engenheiras) enseja lacunas no diário de bordo desse périplo poético de 20 anos. São “dias voados” que, na sua ausência, convocam o leitor à procura da obra completa, mas também, por circunstâncias fortuitas, à experiência na matéria-livro da perda, da cesura e do silêncio, fundamentos da poesia deste “cronista da memória”, conforme o epíteto que lhe atribuiu Carlos Nejar.

2. Como assinalamos, também a poética iacyriana encontra a sua destinação na semântica vária do verbo coligir. Trata-se de realizar “a consumação do mar nos livros” (Primeiro livro de chuvas, “Que a treva mesma”), recorrendo a um rigor formal – “Aqui tens o rigor, visão e engenho / tão resumidos ao fulgor que finges” (Mirante, 3.) – e a uma linguagem simbólica de tal modo elaborada que “esconde sempre / outro dédalo // aceso em seu cavalo” (Colagem de bordo e outros poemas, “Três horas”). De como soletra as imagens do mar, o poeta alcança uma conciliação inaudita entre o concreto e o visionário, a geometria e a vertigem. A simbólica do oceano comparece aqui em sua complexidade e ambivalência. Seja lugar de desterro ou sítio de aventuras e de florescimento, águas primordiais ou imagem do informe e do tenebroso, um meio de purificação ou a própria potência destruidora – símbolo da “hostilidade de Deus”, como no Apocalipse de São João –, “outro é o mar” para aquele que se abisma na indigência do tempo e na crise da linguagem. Tal diz o poeta enquanto Sísifo: “acaso orfeu anfion? / não: seu canto é morte / cacto / desolação” (Sísifo no espelho, “As mãos gastam-se na cal”), pois o gosto apurado pelo/no verbo sabe da linguagem sitiada pelas potências da loquacidade midiática e da lógica cartesiana, sabe que a “palavra carece de pátria / lugar de raiz e eleição” (Exercício estrangeiro, “Pequeno diário da palavra”), sabe que apenas “no exercício e na entrega / o mar floresce” (O aprendizado da figura, “No jardim/IV”). E assim, no poema que empresta título a esta recolha, sintetiza o destino do poeta num tempo de indigência:

inverte-se enfim a arquitetura,
onde havia pedra
resta agora outra figura:
ruína em que o oceano
se ajoelha e bate,
eternamente bate, mas
onde jamais se apura.
(Primeiro livro de chuvas)

3. Nada breve a onomástica de deuses, poetas, figuras bíblicas, pintores e heróis míticos. Mas engana-se o leitor que atribua a esse recurso mera função classicizante. “A erudição se enruste, vez e outra” (Nejar), e aos nomes de Odisseu, Bandeira, Cristo e Jezebel vêm-se somar os de anônimos levantados do “chão comum” da memorablia do poeta: Anarina, Ulpiniano, Mariana, Nonato Correia, apenas para citar alguns desse “alfabeto de perdas”. E dentre todos, é a partir de uma quase ausência que opera a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Apenas uma vez referido, um outro nome exsurge. Seja no seu traço saturnal e místico ou na busca das sombras amadas do passado, seja no “solilóquio de perdas” (Fábio Lucas) ou na “linguagem empenhada em testemunhar a realidade-em-trânsito” (Sonia Brayner), é Orfeu quem assombra a poética iacyriana. A infância é a sua Eurídice:

algo resiste em sua ausência
: esses olhos
esses pobres olhos foram seus um dia

o passado abre-se como um livro
ah
o passado é sempre um livro aberto
com uma página só

vazia
(O aprendizado da figura, “No jardim/XXVI”)

Mas ainda quando “O passado desata seus velames / sobre águas-vivas de terror e gesso” (Mirante, 8.), Orfeu não acolhe a inércia. Por isso o canto, para arrojar Argo ao oceano: “todo porto é um abandono // e essa aventura de nunca estar / que é toda viagem / e esse não ser que nos redime” (O aprendizado da figura, “E foram dias de rigor”). Canto coletivo, de todos e de cada um, pois a viagem desmerece o ego, então fluido em figurações, fugas e esfinges: “pergunta é cerne de homem” (Exercício estrangeiro, “Trilogia do gato”). Mesmo que resumindo em letras escuras a infância e o mar, a voz plural do poeta nos convoca a “Uma procura que jamais se esconde, / que não sabe sequer o que procura, / que desconhece até mesmo por onde / se esquivou a sua própria aventura” (Mirante, 32). E, nas muitas personae que este “exercício estrangeiro” nos oferta, compartilhamos também a busca “obstinada de uma geometria” (Margarida Salomão), capaz de destinar a nau a outros horizontes, de encontrar “um signo que é toda a infância” (O aprendizado da figura, “A primeira ilha”), de fazer do mundo um lugar de habitação – ainda que “reste apenas uma nau, / sozinha, / e um dique” (Messe, “Ao princípio”).

4. Como a dor ou as pequenas mortes, a poesia nos desperta e sacode. De nada adianta rasgar os calendários, condenar Orfeu às ilhas do exílio, ensurdecer o mar, pois “de muito longe / os ventos nos empurram” (Messe, “Não há missivas”) para os círculos da poesia. E se “até mesmo as leis têm seus carnavais” (Mirante, 8.), chegará o dia em que as verticais de Iacyr Anderson Freitas vençam a horizontalidade vesga do mercado editorial brasileiro para que um número maior de leitores possa experimentar esses dias de rigor e febre.


5. De Verso e palavra (1982) a Mirante (1999), a poética iacyriana está a exigir mais do que estas notas ligeiras. Ao menos em parte, a fortuna crítica que vem acumulando e a divulgação obtida para além de nossas fronteiras fazem justiça ao exercício de resistência, afeto e rigor que é toda a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Quanto a estas notas, que tenham o mesmo destino reivindicado por Mallarmé para o “Préface” a Un coup des dés jamais n’abolira le hasard: “Gostaria que esta nota não fosse lida, ou que, apenas percorrida, fosse logo esquecida...”  

Iacyr Anderson Freitas
(Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, 1963)