segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

“ENTRE A FOTO E O FATO”


Em HOMENAGEM AO poeta Mauro Fonseca

Plus douce qu’aux enfants la chair des pommes sures...
(Mais doce que ao menino os frutos não maduros...)
Arthur Rimaud, “Le bateau ivre”
Trad. Ivo Barroso

Fernando Fiorese

Dois fenômenos complementares e adversativos assinalam o acidentado trânsito entre a infância e a juventude: a tarefa trôpega, mas urgente e apaixonada, de participar dos acontecimentos do mundo e o medo pânico de afirmar-se homem abismado no tempo presente, de fazer-se sujeito histórico e assim enfrentar a inelutável consciência da morte – “essa terrível prenda” que o fim da infância nos dá. Daí que, a princípio e no mais das vezes, as incursões aventurosas do adolescente para além das paredes da casa paterna sejam apenas a busca de um outro abrigo, uma outra clausura, algo como um quadrado mágico porque resguardado pela linha de força que atrai o jovem e o mantém junto ao círculo de amigos. E quase ao modo de uma ciranda infantil – sempre de mãos dadas, ainda que em segredo, seja por mero pudor ou para afirmação das suas personae –, a confraria de garotos e garotas logo rubrica no mapa da cidade, não por acaso, as suas rotas de fuga e os seus lugares protegidos, caricaturas de um útero sem mãe – os mesmos percursos, as mesmas ruas, as mesmas esquinas, os mesmos bares, as mesmas praças, os mesmos locais ermos e incógnitos.
Em muitos outros casos, esta tensão entre as delícias libertárias e libertinas prometidas pela vida exterior e os medos próprios daquele que se lança ao mar do mundo sem roteiro ou bússola faz com que a criança imaginosa prestes a morrer custe a despregar do jovem em luta para vir a ser. Por conta disto, a ficção – em particular aquela amealhada nos livros, nos filmes, nas letras de música e nas peças de teatro – costuma contaminar o real, a ponto do olhar do adolescente enfeitar os acontecimentos mais ordinários e as pessoas mais prosaicas com características emprestadas de enredos literários e personagens cinematográficas. As demasias da fabulação infantil demoram a arrefecer e desertar, pois são o anteparo necessário ao choque de realidade que transtorna as verdades assentadas no chão sólido e seguro da ciência familiar. A cada movimento, o mundo adulto dá notícia ao calouro de que não há conta, peso ou medida para a matéria bruta e caótica da realidade. Resta-lhe, pois, o imaginário como pièce de résistance ao cabal desmantelo do mundo que conhece e acredita real. Ao menos até que também a imaginação seja domesticada ou arrematada pela pragmática da sociedade de consumo.
Foi aos dezessete anos que conheci o poeta Mauro Fonseca (1962-1988). Aos dezessete anos, ambos às voltas com a “Sturm und drang of adolescence”, conforme a feliz imagem que W. H. Auden (1907-1973) emprega em “Letter to Lord Byron” para traduzir a sua própria travessia da infância à mocidade:

We all grow up the same way, more or less;
Life is not known no give away her presents;
She only swops. The unselfconsciousness
That children share with animals and peasants
Sinks in the Sturm und drang of adolescence.
Like other boys I lost my taste for sweets,
Discovered sunsets, passion, God, and Keats.


Todos crescemos de modo igual;
A vida não dá nada de presente;
Ela só barganha. O inconsciente,
Que partilham menino e animal,
Afunda na Sturm und Drang do moço.
Tal outros garotos, perdi o gosto,
Topei poentes, paixões, Deus e Keats.
(Tradução minha.)

Arthur Rimbaud aos dezessete anos, outubro de 1871
Fotografia de Étienne Carjat

Dezessete anos – a idade que, através do poema “Roman”, o enfant terrible Arthur Rimbaud (1854-1891) elegeu como símbolo da paixão abrupta e incerta, da errância, da boemia e da rebeldia da juventude:

On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
– Un beau soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés tapageurs aux lustres éclatants!
– On va sous les tilleuls verts de la promenade.

Les tilleuls sentent bon dans les bons soirs de juin!
L’air est parfois si doux qu’on ferme la paupière;
Le vent chargé de bruits, – la ville n’est pas loin,
A des parfums de vigne et des parfums de bière...

II

– Voilà qu’on aperçoit un tout petit chiffon
D’azur sombre, encadré d’une petite branche,
Piqué d’une mauvaise étoile, qui se fond
Avec de doux frissons, petite et toute blanche...

Nuit de juin! Dix-sept ans! – On se laisse griser.
La sève est du champagne et vous monte à la tête...
On divague; on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite là, comme une petite bête...

III

Le cœur fou Robinsonne à travers les romans,
– Lorsque, dans la clarté d’un pâle réverbère,
Passe une demoiselle aux petits airs charmants,
Sous l’ombre du faux-col effrayant de son père...

Et, comme elle vous trouve immensément naïf,
Tout en faisant trotter ses petites bottines,
Elle se tourne, alerte et d’un mouvement vif...
– Sur vos lèvres alors meurent les cavatines...

IV

Vous êtes amoureux. Loué jusqu’au mois d’août.
Vous êtes amoureux. – Vos sonnets La font rire.
Tous vos amis s’en vont, vous êtes mauvais goût.
– Puis l’adorée, un soir, a daigné vous écrire!...

– Ce soir-là,... – vous rentrez aux cafés éclatants,
Vous demandez des bocks ou de la limonade...
– On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu’on a des tilleuls verts sur la promenade.


I

Não se pode ser sério aos dezessete anos.
– Um dia, dá-se adeus ao chope e à limonada,
À bulha dos cafés de lustres suburbanos!
– E vai-se sob a verde aléia de uma estrada.

O quente odor da tília a tarde quente invade!
Tão puro e doce é o ar, que a pálpebra se arqueja;
De vozes prenhe, o vento – ao pé vê-se a cidade, –
Tem perfumes de vinha e cheiros de cerveja...

II

– Eis que então se percebe uma pequena tira
De azul escuro, em meio à ramaria franca,
Picotada por uma estrela má, que expira
Em doce tremular, muito pequena e branca.

Noite estival! A idade! – A gente se inebria;
A seiva sobe em nós como um champanhe inquieto...
Divaga-se; e no lábio um beijo se anuncia,
A palpitar ali como um pequeno inseto...

III

O peito Robinsona em clima de romance,
Quando – na palidez da luz de um poste, vai
Passando uma gentil mocinha, mas no alcance
Do colarinho duro e assustador do pai...

E como está te achando imensamente alheio,
Fazendo estrepitar as pequenas botinas,
Ela se vira, alerta, em rápido meneio...
– Em teus lábios então soluçam cavatinas...

IV

Estás apaixonado. Até o mês de agosto.
Fisgado. – Ela com teus sonetos se diverte.
Os amigos se vão: és tipo de mau gosto.
– Um dia, a amada enfim se digna de escrever-te!...

Nesse dia, ah! meu Deus... – com teus ares ufanos,
Regressas aos cafés, ao chope, à limonada...
– Não se pode ser sério aos dezessete anos
Quando a tília perfuma as aléias da estrada.
(Trad. Ivo Barroso)
  
Aos dezessete anos, Rimbaud foi retratado por Étienne Carjat (1828-1906) numa fotografia que se tornou quase alegoria da idade experimental e inamovível da lírica moderna. Aos dezessete anos, conheci o poeta Mauro Fonseca e topei com a obra do voyant Rimbaud. Eram tempos férreos e feéricos, como costumam ser os verdes anos da juventude e como foram os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Talvez por conta disto – e também de tudo quanto ficou dito nos parágrafos anteriores –, foto e fato se fundiram na memória daquele distante ano de 1980.
A imagem daquele jovem sozinho e silencioso, assentado nos primeiros degraus de uma escada nos fundos de um enorme salão branco – o corpo pequeno, magro e como que contorcido por um qualquer incômodo físico ou espiritual inominável; os cabelos em desalinho; calça e camisa despreocupadas por inteiro da moda; um cigarro transitando nervoso entre a mão e a boca; as pernas recolhidas, talvez pouco à vontade porque suspensa a errância que lhes era própria; o olhar ora alheio, ora oblíquo, ora lâmina –, a essa imagem colou-se de forma indelével as figurações e as lendas em torno de Rimbaud. Em segredo, sem que nem mesmo ele soubesse, tornou-se um meu Rimbaud pessoal, doméstico, contemporâneo, tangível. Porque os encontros posteriores com Mauro Fonseca, ao longo dos anos 1980, acrescentaram àquela imagem primeira outros traços que, de forma equívoca ou não, depreendia eu das seguidas leituras da obra e da biografia de Rimbaud. O tempo tratou de corrigir muitos enganos e aplacar algumas ignorâncias em relação à poética do autor de “Le bateau ivre”. 

Foto de Mauro Fonseca [s.d.]
Extraída de Entre o aborto e o parto: uma antologia
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)

Também o tempo e a madureza que este nos empresta – quer a desejemos ou não – se incumbiram de apartar os mitos acerca de Rimbaud (a foto) dos traços do amigo real e próximo Mauro Fonseca (o fato), os quais podem ser abreviados nos seguintes termos: a alegria provocadora do menino que quebra todos os brinquedos para inventar outros e resistir na infância; o jeito maladroit para as coisas da vida prática; a afirmação do caráter heróico de estar à margem da sociedade burguesa; a ânsia por uma vida de aventuras que o levou a uma temporada em Rondônia; a crença no caráter demiúrgico da palavra poética, aferrado que era à ideia do enthousiasmós grego; a ternura desmedida para com os despossuídos e os simples de coração; o pendor místico, que encontra em Francisco de Assis a sua mais elevada e cabal inspiração; a melancolia de quem se confronta com as rodas dentadas de um tempo histórico bárbaro e sem sentido.
Mauro Fonseca foi, ao mesmo tempo, um menino à cata das Illuminations que a poesia pode oferecer aos tempos sombrios e um homem cuja delicadeza não resistiu às numerosas e agônicas saisons en enfer do século XX. Sobre ele, não tenho mais palavras a serem ditas, exceto aquelas com que Murilo Mendes encerra o “retrato-relâmpago” de São Francisco de Assis: “... um inconformista, um rebelado, um fuorilegge; tal seu mestre”. 

Juiz de Fora, 21 de maio de 2015,
no aniversário de 53 anos do poeta Mauro Fonseca


Entre o aborto e o parto: uma antologia,
obra organizada pelo filho do autor, Mauro Morais
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)