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caprichos sobre livros, filmes, gentes, coisas etc.
quarta-feira, 27 de julho de 2016
terça-feira, 12 de julho de 2016
quinta-feira, 2 de junho de 2016
"OCEANO COLIGIDO": NOTAS PARA UM PREFÁCIO
Prefácio
à antologia poética
Oceano
coligido (1980-2000), de Iacyr
Anderson Freitas
(São
Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 7-11).
Fernando Fiorese
1. Para além de
título desta antologia, a metáfora Oceano
coligido diz da poética de Iacyr Anderson Freitas. Não é outro o empenho do
poeta: coligir na simbólica do mar,
das águas em movimento, a dinâmica da vida, o embate entre memória e esquecimento.
Tanto no sentido próprio (recolher, juntar, reunir; contrair, apertar,
estreitar) quanto nas suas múltiplas figurações (adquirir, obter, ganhar;
concluir, deduzir; refletir em, passar pela memória, examinar; provocar,
causar, sofrer), o étimo latino colligere
destina esta obra coletânea aos riscos da ausência. O que afirma Ruy
Espinheira Filho no prefácio a Lázaro (1995)
– “São vários poemas – que também são, sem contradição, um só poema. Ou, se
quiserem, vice-versa” – caracteriza todos os demais livros do autor, de forma
que o ato de coligir (mesmo quando realizado por mãos engenheiras) enseja
lacunas no diário de bordo desse périplo poético de 20 anos. São “dias voados”
que, na sua ausência, convocam o leitor à procura da obra completa, mas também,
por circunstâncias fortuitas, à experiência na matéria-livro da perda, da
cesura e do silêncio, fundamentos da poesia deste “cronista da memória”,
conforme o epíteto que lhe atribuiu Carlos Nejar.
2. Como
assinalamos, também a poética iacyriana encontra a sua destinação na semântica
vária do verbo coligir. Trata-se de
realizar “a consumação do mar nos livros” (Primeiro
livro de chuvas, “Que a treva mesma”), recorrendo a um rigor formal – “Aqui
tens o rigor, visão e engenho / tão resumidos ao fulgor que finges” (Mirante, 3.) – e a uma linguagem
simbólica de tal modo elaborada que “esconde sempre / outro dédalo // aceso em
seu cavalo” (Colagem de bordo e outros
poemas, “Três horas”). De como soletra as imagens do mar, o poeta alcança
uma conciliação inaudita entre o concreto e o visionário, a geometria e a
vertigem. A simbólica do oceano comparece aqui em sua complexidade e
ambivalência. Seja lugar de desterro ou sítio de aventuras e de florescimento,
águas primordiais ou imagem do informe e do tenebroso, um meio de purificação
ou a própria potência destruidora – símbolo da “hostilidade de Deus”, como no Apocalipse de São João –, “outro é o
mar” para aquele que se abisma na indigência do tempo e na crise da linguagem.
Tal diz o poeta enquanto Sísifo: “acaso orfeu anfion? / não: seu canto é morte /
cacto / desolação” (Sísifo no espelho,
“As mãos gastam-se na cal”), pois o gosto apurado pelo/no verbo sabe da
linguagem sitiada pelas potências da loquacidade midiática e da lógica
cartesiana, sabe que a “palavra carece de pátria / lugar de raiz e eleição” (Exercício estrangeiro, “Pequeno diário
da palavra”), sabe que apenas “no exercício e na entrega / o mar floresce” (O aprendizado da figura, “No
jardim/IV”). E assim, no poema que empresta título a esta recolha, sintetiza o
destino do poeta num tempo de indigência:
inverte-se enfim a arquitetura,
onde havia pedra
resta agora outra figura:
ruína em que o oceano
se ajoelha e bate,
eternamente bate, mas
onde jamais se apura.
(Primeiro livro de
chuvas)
3. Nada breve a
onomástica de deuses, poetas, figuras bíblicas, pintores e heróis míticos. Mas
engana-se o leitor que atribua a esse recurso mera função classicizante. “A erudição
se enruste, vez e outra” (Nejar), e aos nomes de Odisseu, Bandeira, Cristo e Jezebel
vêm-se somar os de anônimos levantados do “chão comum” da memorablia do poeta: Anarina, Ulpiniano, Mariana, Nonato Correia,
apenas para citar alguns desse “alfabeto de perdas”. E dentre todos, é a partir
de uma quase ausência que opera a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Apenas uma
vez referido, um outro nome exsurge. Seja no seu traço saturnal e místico ou na
busca das sombras amadas do passado, seja no “solilóquio de perdas” (Fábio
Lucas) ou na “linguagem empenhada em testemunhar a realidade-em-trânsito”
(Sonia Brayner), é Orfeu quem assombra a poética iacyriana. A infância é a sua
Eurídice:
algo resiste em sua ausência
: esses olhos
esses pobres olhos foram seus um dia
o passado abre-se como um livro
ah
o passado é sempre um livro aberto
com uma página só
vazia
(O aprendizado da
figura, “No jardim/XXVI”)
Mas
ainda quando “O passado desata seus velames / sobre águas-vivas de terror e
gesso” (Mirante, 8.), Orfeu não
acolhe a inércia. Por isso o canto, para arrojar Argo ao oceano: “todo porto é
um abandono // e essa aventura de nunca estar / que é toda viagem / e esse não
ser que nos redime” (O aprendizado da
figura, “E foram dias de rigor”). Canto coletivo, de todos e de cada um,
pois a viagem desmerece o ego, então fluido em figurações, fugas e esfinges:
“pergunta é cerne de homem” (Exercício estrangeiro,
“Trilogia do gato”). Mesmo que resumindo em letras escuras a infância e o mar,
a voz plural do poeta nos convoca a “Uma procura que jamais se esconde, / que
não sabe sequer o que procura, / que desconhece até mesmo por onde / se esquivou
a sua própria aventura” (Mirante,
32). E, nas muitas personae que este
“exercício estrangeiro” nos oferta, compartilhamos também a busca “obstinada de
uma geometria” (Margarida Salomão), capaz de destinar a nau a outros
horizontes, de encontrar “um signo que é toda a infância” (O aprendizado da figura, “A primeira ilha”), de fazer do mundo um
lugar de habitação – ainda que “reste apenas uma nau, / sozinha, / e um dique”
(Messe, “Ao princípio”).
4. Como a dor
ou as pequenas mortes, a poesia nos desperta e sacode. De nada adianta rasgar
os calendários, condenar Orfeu às ilhas do exílio, ensurdecer o mar, pois “de
muito longe / os ventos nos empurram” (Messe,
“Não há missivas”) para os círculos da poesia. E se “até mesmo as leis têm seus
carnavais” (Mirante, 8.), chegará o
dia em que as verticais de Iacyr Anderson Freitas vençam a horizontalidade
vesga do mercado editorial brasileiro para que um número maior de leitores
possa experimentar esses dias de rigor e febre.
5. De Verso e palavra (1982) a Mirante
(1999), a poética iacyriana está a exigir mais do que estas notas ligeiras. Ao
menos em parte, a fortuna crítica que vem acumulando e a divulgação obtida para
além de nossas fronteiras fazem justiça ao exercício de resistência, afeto e
rigor que é toda a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Quanto a estas notas, que
tenham o mesmo destino reivindicado por Mallarmé para o “Préface” a Un coup des dés jamais n’abolira le hasard:
“Gostaria que esta nota não fosse lida, ou que, apenas percorrida, fosse logo
esquecida...”
Iacyr Anderson Freitas (Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, 1963) |
terça-feira, 3 de maio de 2016
OSCAR DA GAMA (1870-1900)
Publicado
originalmente na revista Verbo de Minas: Letras
(Juiz
de Fora, CES/JF, v. 5, n. 10, jul./dez. 2006, p. 163-168)
Fernando
Fiorese
Devido ao desaparecimento precoce – antes mesmo de completar 30 anos – e à reduzida (para não dizer inexistente) fortuna crítica, consoante a parcimônia da obra lírica publicada em vida, Luares (1892), e a restrita circulação dos títulos post-mortem, Noctâmbulos e Flora rubra [1], não foi possível ao poeta, jornalista e comediógrafo juiz-forano Oscar da Gama
(1870-1900) revisar os equívocos do primeiro livro de versos ou absorver os indicativos da
exegese crítica de seus contemporâneos.
Comemorativa do centenário do volume póstumo Poesias, a presente publicação enseja
recolocar em circulação a lírica de Oscar da Gama [2], permitindo-nos flagrar nos
versos do jovem poeta os exercícios de procura da própria rubrica, tendo por
cena o complexo estitilístico pós-romântico e por contracena o fin-de-siècle
do Brasil oitocentista. A priori, acercar-se do cânone
parnasiano parece-nos ser o modo privilegiado de Oscar da Gama nesta busca de
uma marca poética singular. Trata-se de eleger afinidades, nominar os membros
do grupo de pertença, realizar as hommages que lhe permitam adentrar os
pórticos do Parnaso nacional. Proliferam, assim, os versos dedicados a
poetas, intelectuais e escritores juiz-foranos (Lindolfo Gomes, Belmiro Braga,
Heitor Guimarães, José Rangel e Estevam de Oliveira, dentre outros) e aos
próceres – e mesmo muitos epígonos – do período realista-naturalista (Valentim
Magalhães, Olavo Bilac, Artur Azevedo, B. Lopes, Augusto de Lima, Guimarães
Passos, Lúcio Mendonça etc.).
Também as traduções que encerram Flora rubra – “Tu e eu” (“Tu e
yo”) [3], do escritor, político e historiador Víctor Balaguer (1824-1901), uma
das principais figuras da Renaixença catalã, e “Pai” (“Le père”), de
François Coppée (1842-1908), poeta francês partícipe do Parnasse Contemporain
– e a assinatura do principal parnasiano mineiro, Augusto de Lima
(1859-1934), no prefácio de Luares,
são indícios do empenho de Oscar da Gama em filiar-se à religião da arte
do Parnaso. No entanto, desde os títulos dos livros aqui reunidos até algumas
das constantes estilísticas e temáticas que caracterizam a poética oscariana,
parece-nos que o autor juiz-forano, sem descurar do precedente Romantismo,
oscila entre os múltiplos estilos do segundo Oitocentos, num regime de
indecidibilidade e tensão que estende o seu arco do Realismo ao Simbolismo.
Do Romantismo, a principiar pelo acolhimento do elemento noite nos
títulos Luares e Noctâmbulos, Oscar da Gama reverbera tanto o
poema de “comício” – “Página ao Marechal”, “Versos (Recitados por uma atriz na
festa da Auxiliadora Portuguesa)”, “A Silva Jardim”, “Ao Brasil!” (datado do
primeiro 15 de novembro republicano), “Pesadelo” – quanto a prevalência da
oscilação entre a redondilha maior, metro breve de cadência popular, e o nobre
decassílabo. Em Flora rubra ressoam Les fleurs du mal baudelaireanas,
indício de um Simbolismo postiço que, ao longo dos três livros aqui reunidos,
reafirma-se na abundância de reticências e numa semântica da insinuação,
ainda que contaminada pela eloquência dos parnasianos. Tais traços
estilísticos, mesmo que em parte, antagonizam com a predileção pelas descrições
objetivas, nítidas e estáticas dos cultores do “helênico poema de mármore”,
para usar palavras do próprio Oscar da Gama.
Também ao mesmo Simbolismo
deve-se tributar um certo pendor “decadentista”, que nos faz antecipar o
pessimismo cientificista de Augusto dos Anjos (1884-1914), como exemplificam os
versos de “Renúncia satânica” (“Ah! Que, de sob a máscara traiçoeira / Da face,
surja enfim esta caveira...”), “Diálogo sinistro” (“– Podridão, de que flor és tu a
essência horrível? / De que planta vens tu? Da eufórbia? Do estramônio? / E
esse que te prepara, alquimista invisível, / Fantástico, espectral... quem é
ele? O Demônio?”), “Versos a um louco” (Que tufão infernal perdeu-te o norte, /
Que mal enorme e fundo te invalida, / Alma, que te partiste antes da morte, /
Cérebro, que te apodreceste em vida!”) ou “Num cemitério”:
Aqui onde me vedes, aqui onde
Lá do mundo não chega a dor fingida...
E da boca, até mesmo a mais sentida,
Nenhum eco, nenhum à voz responde;
Aqui, aqui, sob a chorosa fronde
Da triste casuarina, aos céus erguida,
Oculto e escondo cauteloso a vida,
Como um avaro que um tesouro esconde.
Não vejais nisto tresloucado intento...
A humana voz é, como a das serpentes,
Vipérea, cheia de baldões e insultos!
Odeio-a... e ouvir, quero antes a do vento,
Assobiando aqui por entre os dentes
Escamados dos crânios insepultos.
Da mesma forma, o traço simbolista exsurge na alternância temática entre
o amor idealizado – “Quem és tu, musa blasfema, / Para a epopéia
suprema / Do Amor – o Zeus do Universo?” (“Excelsior”) – e o amor carnal,
com o significativo predomínio deste último não apenas a reiterar a prevalente
filiação parnasiana do autor, mas rubricando uma das principais características
de sua obra, da qual destacamos os quartetos de “Erótica”:
O filtro embriagante e doce
Do teu lábio rubro eterno
É como se um néctar fosse
Ou se fosse algum falerno.
Sorvo-o enfebrecido e ardente,
Convulso, louco, sem pejos,
Na tua boca fremente,
Na taça rubra dos beijos.
Nas pontas eretas, túmidas,
Desses seios bem iguais
A duas pérolas úmidas,
Duas pérolas colossais!
E depois... num profundo hausto,
Osculando-te a garganta,
Eu caio, bêbedo, exausto,
De tanta volúpia, tanta!
O próprio Oscar da Gama, no poema
“Sons e cores”, nos desvela a tensão ou indecisão que em sua obra figura entre
os metros “esculturais” da estética plástica do Parnaso e o anelo de
musicalidade que, a partir da divisa de Paul Verlaine (1844-1896) na sua Art
poétique – “De
la musique avant toute chose” –,
tornou-se um postulado simbolista:
Dizem que a cor nos desperta
A vaga impressão incerta
Da música a mais sonora...
E, também, que os sons as cores
Lembram, embora incolores
E invisíveis, muito embora.
Duvidei; mas hoje o creio
Por Deus, por ti, por teu seio
Feito de neve e de olores;
Pois, esses teus olhos negros
São como doces alegros
Na doce escala das cores...
Aos traços temáticos e estilísticos até aqui assinalados, poderíamos
acrescentar outros que, participando do cânone parnasiano, são na poesia de
Oscar da Gama sintomas do empenho falho (?) do poeta no sentido de inscrever a
sua rubrica na cena literária brasileira do segundo Oitocentos: “Novo condor,
pela História / Traçando um áureo caminho, / Irei fazer o meu ninho / Lá nos
píncaros da Glória!” (“Homo”). Grafado em pedra no monumento que a
municipalidade fez erguer em homenagem ao autor de Luares no Parque
Halfeld (centro de Juiz de Fora), tal quarteto diz-nos pouco desta poética que,
muitas vezes ultrapassando os limites epocais e os horizontes da província, nos
enseja inferir dos seus possíveis desdobramentos, precocemente interruptos,
algo análogo aos versos primeiros de Manuel Bandeira (1886-1968). Neste
sentido, para citar um único exemplo, “Os noivos” nos surpreende pela singeleza
da forma e pelo lirismo coloquial:
Palavras de namorados,
Itinerário imprescrito
– Rumo talvez do Infinito,
Vão os dois, os braços dados.
Vão por escusas veredas
Alcatifadas de alfombras,
Fugindo ao luar; as sombras
Buscando das alamedas.
Não buscam jardins nem prados,
Trechos azuis do infinito...
– Todo lugar é bonito
Aos olhos dos namorados.
Mapear ressonâncias, inferir desdobramentos, enumerar constantes
estilísticas e temáticas, sublinhar a dinâmica das tensões ou dizer dos limites
horizontais do autor são estratégias que encontram o seu termo no ponto final
que este prefácio já está por merecer. Tudo o que aqui ficou dito não deve
servir de antolhos para a leitura da obra, na qual quaisquer referências a estilos
de época e períodos literários são de todo prescindíveis. Ainda que seja no
delírio do étimo, o cânone articula-se no bélico para destruir o prazer do
texto, o espanto originário da leitura. “Tu le connais, lecteur, ce monstre
délicat” – trata-se da obra na expectação de suas operações.
Notas
[1] Dois anos após a morte
de Oscar da Gama, fez-se publicar em Juiz de Fora o volume Poesias (1902),
reunindo os títulos inéditos Flora rubra e Noctâmbulos e a
segunda edição de Luares, bem como as prosas de Folhas soltas.
[2] A convite da Fundação
Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) da Prefeitura de Juiz de Fora,
escrevemos o presente texto no inverno de 2002 para figurar como prefácio à
reedição fac-similar de Poesias, de
Oscar da Gama. No entanto, circunstâncias jamais explicadas determinaram que o
poeta juiz-forano continue sem merecer a reedição de sua obra.
quarta-feira, 16 de março de 2016
FICÇÕES EM TORNO DE UM POEMA
Depoimento
apresentado no VIII Seminário de Pesquisa
do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
UNESP/Araraquara
(set. 2007) [1]
Fernando Fiorese
Com os meus agradecimentos a
José Luiz Ribeiro, Jesualdo de Almeida Castro, Paolo Menichini,
Mauro Alvim, Maria Lúcia Outeiro Fernandes e Antônio Donizeti Pires.
Para o poeta, dizer do próprio processo
de criação é uma urgência e um impudor. Da urgência, nos salva a incipiente
tradição da vida literária brasileira de recolher o testemunho dos autores
acerca dos seus modos particulares de escrita – e, por via de conseqüência, a
parcimônia dos convites para que desvelem em público, de viva voce ou
mesmo por escrito, os segredos da carpintaria poética. Trata-se, no entanto, de
uma urgência apenas adiada, até que o impudor encontre ocasião de publicar a biografia
de um poema (Drummond), a psicologia da composição (João Cabral), o itinerário
de Pasárgada (Manuel Bandeira), o texto de consulta (Murilo Mendes)
ou outro qualquer título com que se designe essas confissões de ateliê mudadas
em verso ou prosa. Pessoal ou com fins proselitistas, meditabundo ou mero
manual de instruções, amoroso ou irritado, o escrutínio da oficina lírica
guarda algo de obsceno, próximo de um strip-tease que, quando realizado
à perfeição, mais aciona as ficções do voyeur do que desnuda os segredos
da carne.
E digo ficções porque com essas o poeta
adorna e eleva o trabalho extremo e sujo da criação, porque o gesto mesmo de
escrever está cercado de pudor igual ao de defecar, como ressalta João Cabral
de Melo Neto (1999, p. 413):
Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar.
Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.
Mas
não apenas o pudor interdita o dizer os intestinos da criação. Há, maiúsculo, o
acaso, do qual exsurge a obra como linguagem feita matéria. E como o acaso tem
um caos dentro, pouco ou nenhuma memória guarda o poeta desta deriva entre o
silêncio e a palavra. E quando a memória fraqueja ou falta, resta a ficção que,
análoga aos mitos genésicos, dá conta da passagem do caos ao cosmos. Mesmo
porque, aquele que escreve sobre o poema fora do poema, já não é poeta. Aquele
que dá a ver as verdades impudicas da criação não alcança erguer-se do caos. Em
prosa, o poeta desconcerta ou simplesmente engendra as fantasias de quando era
poeta, ou seja, de quando operado pelas forças rivais da linguagem. Assim, aos
eventuais leitores ofereço como horizonte deste texto as seguintes palavras de
W. H. Auden (1957, p. 50):
Aos olhos dos outros, um homem é poeta se escreveu um bom poema. A seus
próprios olhos, é poeta apenas no momento em que está fazendo a última revisão
de um novo poema. No momento anterior, era contudo apenas um poeta em
potencial; no momento posterior, é um homem que parou de escrever poesia,
talvez para sempre (Tradução minha).
Daí porque o que aqui vai escrito situa-se na fronteira entre o
testemunho e o ensaio – também e principalmente no sentido teatral do termo –,
ali onde a fala treme entre o eu civil e o eu da escrita.
Não que se pretenda pessoal e intransferível, pois urdido no deslize de muitas
vozes, no acolhimento do silêncio, na afirmação de lacunas e margens – como uma
apóstrofe, como um convite que seduza outras mãos leitoras para refazer as
ficções que no texto se faz e se desfaz. Aqui escreve a mão indestra,
aquela que participa do espanto de quando, diante do espelho, descubro o que me
escapa ou ultrapassa.
●
Não são poucas as ficções que derivam de e para o poema-livro Um dia,
o trem (FURTADO, 2008). Origem não há, mas posso mudar em fábula tanto o
convite de um amigo [2] no sentido de fornecer-lhe algum poema sobre trem para
um espetáculo teatral jamais levado à cena, quanto a epígrafe – “A infância é
ferroviária” – encontrada em certa crônica de Paulo Mendes Campos incluída numa
antologia que me emprestou o mesmo amigo, talvez com o intuito de garantir o
texto prometido. Tais circunstâncias, ainda que de modo velado, são registradas
na edição do livro. Assim, da dedicatória consta o nome do autor do convite
acima citado, enquanto em nota rubrico o período de elaboração do poema – o
qual, por demasiado, não me permitiria atender à demanda teatral –, bem como a
função motora da epígrafe do cronista mineiro:
Iniciei o poema Um dia, o trem em Cabo Frio durante as
férias de julho de 2000, concluindo na cidade de Juiz de Fora em meados de janeiro
de 2004, com alguns poucos acréscimos e muitas correções posteriores.
A crônica de Paulo Mendes
Campos, que este poema “aciona e epigrafa” (conforme aludo na seção "Mesma
água"), foi publicada sem título na Pequena antologia do trem: a ferrovia na
literatura brasileira, organizada por Laís Costa Velho... (FURTADO, 2008, p.
45).
A tais fabulações, embora o lugar-comum, posso acrescentar a infância
ferroviária que me faltou, uma vez que, nas palavras de Michel Foucault (1992, p. 31), “a ausência é o
lugar primeiro do discurso”. Quando muito, tive férias ferroviárias. Já que restaram na cidade natal (Pirapetinga) apenas as ruínas da estação, adornada de um
cúmulo de dormentes, trilhos e vagões carcomidos, o trem atravessou a minha
infância na narrativa dos adultos ou nos verões férreos e feéricos de um
município vizinho – Recreio –, cujo nome diz per se a substância do
lugar e do tempo. Por contaminação e tangência, a estrada de ferro figura nas
memórias inventadas da minha infância, desdobrando-se na poesia em metáforas
que rivalizam com aquelas outras que denomino costureiras [3]. Não por acaso, são estas as imagens
com que se desvela os modos e manobras da escrita de Um dia, o trem:
Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.
(FURTADO, 2008, p. 31)
São duzentos e quarenta e oito versos em trinta e uma estrofes, agrupadas
em quinze seções de duas e a última com apenas uma estrofe. Não há qualquer
rigor métrico ou rímico, embora a prevalência do decassílabo e das rimas
toantes. Tal costura deriva do “duelo do metro com o acidente” (Ibidem,
p. 29), através do qual o poema realiza a convergência do cálculo do discurso
paterno e das desmesuras de uma fala menina, do tempo perdido do adulto e do
presente puro da criança, do vocabulário algo culto do poeta e das palavras
simples da infância. Assim embaralhadas e confundidas, tais vozes intentam narrar
– este talvez o logro maior destas ficções – a morte simbólica do pai ante a
aparição abrupta do trem.
Não há aqui o pai maiúsculo de Freud ou Kafka, pois indecidível entre “o
menino que foi e nele avulta” (Ibidem, p. 13) e a ciência “dos muitos nãos
/ com que a madureza nos apouca” (Ibidem, p. 41), entre as lembranças da
infância ferroviária e as pequenas mortes que atravessou para estar ali, de
mãos dadas com o filho. Daí o “escrever por agulhas” que intitula a décima
seção do poema: reunir duas margens, costurar duas vozes, vizinhas e
estrangeiras a um só tempo, “porque nunca se trata da mesma água” (Ibidem,
p. 37), embora fluindo no mesmo discurso-rio. Ao menino, “sem palavras ou
peias”, importa a matéria trem, “aquela demasia de ferro e fuga, / crescida de
suas próprias engrenagens, / qual foguete quando no céu se abre” (Ibidem,
p. 19), enquanto ao “pai menor” resta apenas mudar menino e trem em metáfora, em linguagem. Porque
ainda quando “passar o menino a limpo e a luto” seja apenas “um acidente de
percurso” e não a “cura do desacordo / entre a mão que escreve e a com que
assino” (Ibidem, p. 41), a textualização da infância opera como um modo
de adiar aquela outra morte, “maiúscula e cabal” (Ibidem, 23). Ou, ao
menos, fazer dela também metáfora, figura de linguagem sob controle:
Há de entender o leitor tanto adiar,
pois o menino no adulto demora
conforme uma medida que lhe é própria:
não marca tempo, nem guarda o lugar.
Aponta a morte com o riso fácil
de quem, com o que foi e o que deveria,
reúne em si duas margens e, à revelia,
publica aqui outra edição do desastre.
(Ibidem, p. 43).
Às linhas autobiográficas e ficcionais deste bordado de muitas pontas
soltas e arremates precários, acrescente-se ainda a metalinguagem. Pois para
traduzir o menino na bitola lírica, cumpre ao poeta fazê-lo conforme as lições
da infância ferroviária, qual seja, os modos “como no texto se dá a forma-trem”
(Ibidem, p. 25):
Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.
Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e esperta
uma voz de si mesma estrangeira
– e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.
(Ibidem, p. 35)
Na tensão entre poesia e prosa, entre cálculo e desastre, entre madureza
e infância, Um dia, o trem desenreda a meada de memórias e vozes. Tal
fora a crônica de uma morte anunciada e sempre adiada pela palavra fantasmática
do menino que vigora na figura paterna e a desdobra em suas muitas ficções. São
essas artifícios necessários para que o poema, corpo sem origens e avesso ao
autor, seja o lugar onde dizer da criação é vencer a morte, ainda que no
precário domínio da linguagem. Mesmo quando um “corpo discorde”, tem por
motores a urgência e o impudor que faz esplender a escrita, seus intestinos,
suas misérias. Porque urgente também é o trem que baralha as linhas deste
autor/leitor e, despudoradamente, inaugura o horizonte que, para além do livro,
nos reúne.
“Análoga àquela que assombra o pai / quando dele o trem a altura subtrai”
(Ibidem, p. 39), uma outra morte enseja e remata este texto. Porque se
ao homem assoma o próprio cadáver quando o menino o ultrapassa, regozija-se
aquele desta morte feliz porque simbólica. Ao contrário, está morto por inteiro
(e, talvez, para sempre) o poeta que realiza aqui o trabalho de luto do que foi
vida e vigor nas secretas operações da escrita, num ritual sem esperança ou
garantia de ressurreição.
Notas
[1] Publicado em Matéria de poesia: crítica e criação, organizado por Antônio
Donizeti Pires e Maria Lúcia Outeiro Fernandes (Araraquara; São Paulo:
FCL-UNESP Laboratório Editorial; Cultura
Acadêmica, 2010, p. 207-214)
[2] Refiro-me a José Luiz Ribeiro, dramaturgo e
diretor do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação, vinculado à
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
[3] Não poucos leitores têm associado tais metáforas
costureiras a uma certa vizinhança com a escrita feminina, o que não
ousaria negar. No entanto, apenas para registrar um biografema, devo referir-me
às personagens masculinas do universo da costura, os alfaiates, ofício de meus
tios maternos.
Referências bibliográficas
Auden, W. H. Making and
judging poetry. The Atlantic, Washington, v. 199, n. 1, p. 44–52, jan. 1957.
FOUCAULT, Michel. O
que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro.
Lisboa: Veja, 1992.
FURTADO, Fernando
Fábio Fiorese. Um dia, o trem. São Paulo; Juiz de Fora: Nankin; Funalfa,
2008.
MELO NETO, João
Cabral. Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
Post scriptum:
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
“ENTRE A FOTO E O FATO”
Em HOMENAGEM
AO poeta Mauro Fonseca
Plus douce qu’aux enfants la
chair des pommes sures...
(Mais doce que ao menino os frutos
não maduros...)
Arthur
Rimaud, “Le bateau ivre”
Trad. Ivo
Barroso
Fernando Fiorese
Dois fenômenos complementares e adversativos assinalam o acidentado trânsito
entre a infância e a juventude: a tarefa trôpega, mas urgente e apaixonada, de
participar dos acontecimentos do mundo e o medo pânico de afirmar-se homem
abismado no tempo presente, de fazer-se sujeito histórico e assim enfrentar a
inelutável consciência da morte – “essa terrível prenda” que o fim da infância
nos dá. Daí que, a princípio e no mais das vezes, as incursões aventurosas do
adolescente para além das paredes da casa paterna sejam apenas a busca de um
outro abrigo, uma outra clausura, algo como um quadrado mágico porque resguardado
pela linha de força que atrai o jovem e o mantém junto ao círculo de amigos. E
quase ao modo de uma ciranda infantil – sempre de mãos dadas, ainda que em
segredo, seja por mero pudor ou para afirmação das suas personae –, a confraria de garotos e garotas logo rubrica no mapa
da cidade, não por acaso, as suas rotas de fuga e os seus lugares protegidos,
caricaturas de um útero sem mãe – os mesmos percursos, as mesmas ruas, as
mesmas esquinas, os mesmos bares, as mesmas praças, os mesmos locais ermos e
incógnitos.
Em muitos outros casos, esta tensão entre as delícias libertárias e
libertinas prometidas pela vida exterior e os medos próprios daquele que se
lança ao mar do mundo sem roteiro ou bússola faz com que a criança imaginosa
prestes a morrer custe a despregar do jovem em luta para vir a ser. Por conta
disto, a ficção – em particular aquela amealhada nos livros, nos filmes, nas
letras de música e nas peças de teatro – costuma contaminar o real, a ponto do
olhar do adolescente enfeitar os acontecimentos mais ordinários e as pessoas mais
prosaicas com características emprestadas de enredos literários e personagens
cinematográficas. As demasias da fabulação infantil demoram a arrefecer e
desertar, pois são o anteparo necessário ao choque de realidade que transtorna
as verdades assentadas no chão sólido e seguro da ciência familiar. A cada
movimento, o mundo adulto dá notícia ao calouro de que não há conta, peso ou
medida para a matéria bruta e caótica da realidade. Resta-lhe, pois, o
imaginário como pièce de résistance
ao cabal desmantelo do mundo que conhece e acredita real. Ao menos até que
também a imaginação seja domesticada ou arrematada pela pragmática da sociedade
de consumo.
Foi aos dezessete anos que conheci o poeta Mauro Fonseca (1962-1988). Aos dezessete
anos, ambos às voltas com a “Sturm und drang of adolescence”, conforme a feliz
imagem que W. H. Auden (1907-1973) emprega em “Letter to Lord Byron” para traduzir
a sua própria travessia da infância à mocidade:
We all grow up the same way, more or
less;
Life is not known no give away her
presents;
She only swops. The
unselfconsciousness
That children share with animals and
peasants
Sinks in the Sturm und drang of
adolescence.
Like other boys I lost my taste for
sweets,
Discovered sunsets, passion, God,
and Keats.
Todos crescemos
de modo igual;
A vida não dá
nada de presente;
Ela só
barganha. O inconsciente,
Que partilham
menino e animal,
Afunda na Sturm und Drang do moço.
Tal outros
garotos, perdi o gosto,
Topei poentes,
paixões, Deus e Keats.
(Tradução
minha.)
Arthur Rimbaud aos dezessete anos, outubro de 1871
Fotografia de Étienne Carjat
|
Dezessete anos – a idade que, através do poema “Roman”, o enfant terrible Arthur Rimbaud (1854-1891)
elegeu como símbolo da paixão abrupta e incerta, da errância, da boemia e da
rebeldia da juventude:
On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
– Un beau soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés tapageurs aux lustres éclatants!
– On va sous les tilleuls verts de la promenade.
Les tilleuls sentent bon dans les bons soirs de
juin!
L’air est parfois si doux qu’on ferme la paupière;
Le vent chargé de bruits, – la ville n’est pas
loin,
A des parfums de vigne et des parfums de bière...
II
– Voilà qu’on aperçoit un tout petit chiffon
D’azur sombre, encadré d’une petite branche,
Piqué d’une mauvaise étoile, qui se fond
Avec de doux frissons, petite et toute blanche...
Nuit de juin! Dix-sept ans! – On se laisse griser.
La sève est du champagne et vous monte à la
tête...
On divague; on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite là, comme une petite bête...
III
Le cœur fou Robinsonne à travers les romans,
– Lorsque, dans la clarté d’un pâle réverbère,
Passe une demoiselle aux petits airs charmants,
Sous l’ombre du faux-col effrayant de son père...
Et, comme elle vous trouve immensément naïf,
Tout en faisant trotter ses petites bottines,
Elle se tourne, alerte et d’un mouvement vif...
– Sur vos lèvres alors meurent les cavatines...
IV
Vous êtes amoureux. Loué jusqu’au mois d’août.
Vous êtes amoureux. – Vos sonnets La font rire.
Tous vos amis s’en vont, vous êtes mauvais goût.
– Puis l’adorée, un soir, a daigné vous écrire!...
– Ce soir-là,... – vous rentrez aux cafés
éclatants,
Vous demandez des bocks ou de la limonade...
– On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu’on a des tilleuls verts sur la promenade.
I
Não se pode ser
sério aos dezessete anos.
– Um dia, dá-se
adeus ao chope e à limonada,
À bulha dos
cafés de lustres suburbanos!
– E vai-se sob
a verde aléia de uma estrada.
O quente odor
da tília a tarde quente invade!
Tão puro e doce
é o ar, que a pálpebra se arqueja;
De vozes
prenhe, o vento – ao pé vê-se a cidade, –
Tem perfumes de
vinha e cheiros de cerveja...
II
– Eis que então
se percebe uma pequena tira
De azul escuro,
em meio à ramaria franca,
Picotada por
uma estrela má, que expira
Em doce
tremular, muito pequena e branca.
Noite estival!
A idade! – A gente se inebria;
A seiva sobe em
nós como um champanhe inquieto...
Divaga-se; e no
lábio um beijo se anuncia,
A palpitar ali
como um pequeno inseto...
III
O peito
Robinsona em clima de romance,
Quando – na
palidez da luz de um poste, vai
Passando uma
gentil mocinha, mas no alcance
Do colarinho
duro e assustador do pai...
E como está te
achando imensamente alheio,
Fazendo
estrepitar as pequenas botinas,
Ela se vira,
alerta, em rápido meneio...
– Em teus
lábios então soluçam cavatinas...
IV
Estás
apaixonado. Até o mês de agosto.
Fisgado. – Ela
com teus sonetos se diverte.
Os amigos se
vão: és tipo de mau gosto.
– Um dia, a
amada enfim se digna de escrever-te!...
Nesse dia, ah!
meu Deus... – com teus ares ufanos,
Regressas aos
cafés, ao chope, à limonada...
– Não se pode
ser sério aos dezessete anos
Quando a tília
perfuma as aléias da estrada.
(Trad. Ivo
Barroso)
Aos dezessete anos, Rimbaud foi retratado por Étienne Carjat (1828-1906)
numa fotografia que se tornou quase alegoria da idade experimental e inamovível
da lírica moderna. Aos dezessete anos, conheci o poeta Mauro Fonseca e topei
com a obra do voyant Rimbaud. Eram
tempos férreos e feéricos, como costumam ser os verdes anos da juventude e como
foram os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Talvez por conta disto
– e também de tudo quanto ficou dito nos parágrafos anteriores –, foto e fato
se fundiram na memória daquele distante ano de 1980.
A imagem daquele jovem sozinho e silencioso, assentado nos primeiros
degraus de uma escada nos fundos de um enorme salão branco – o corpo pequeno,
magro e como que contorcido por um qualquer incômodo físico ou espiritual inominável;
os cabelos em desalinho; calça e camisa despreocupadas por inteiro da moda; um
cigarro transitando nervoso entre a mão e a boca; as pernas recolhidas, talvez
pouco à vontade porque suspensa a errância que lhes era própria; o olhar ora
alheio, ora oblíquo, ora lâmina –, a essa imagem colou-se de forma indelével as
figurações e as lendas em torno de Rimbaud. Em segredo, sem que nem mesmo ele
soubesse, tornou-se um meu Rimbaud pessoal, doméstico, contemporâneo, tangível.
Porque os encontros posteriores com Mauro Fonseca, ao longo dos anos 1980,
acrescentaram àquela imagem primeira outros traços que, de forma equívoca ou
não, depreendia eu das seguidas leituras da obra e da biografia de Rimbaud. O
tempo tratou de corrigir muitos enganos e aplacar algumas ignorâncias em
relação à poética do autor de “Le bateau ivre”.
Foto de Mauro Fonseca [s.d.]
Extraída de Entre
o aborto e o parto: uma antologia
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)
|
Também o tempo e a madureza que este nos empresta – quer a desejemos ou
não – se incumbiram de apartar os mitos acerca de Rimbaud (a foto) dos traços
do amigo real e próximo Mauro Fonseca (o fato), os quais podem ser abreviados
nos seguintes termos: a alegria
provocadora do menino que quebra todos os brinquedos para inventar outros e
resistir na infância; o jeito maladroit para as coisas da vida prática; a afirmação do caráter heróico de estar
à margem da sociedade burguesa; a ânsia por uma vida de aventuras que o levou a
uma temporada em Rondônia; a crença no caráter demiúrgico da palavra poética,
aferrado que era à ideia do enthousiasmós grego; a ternura desmedida
para com os despossuídos e os simples de coração; o pendor místico, que
encontra em Francisco de Assis a sua mais elevada e cabal inspiração; a
melancolia de quem se confronta com as rodas dentadas de um tempo histórico
bárbaro e sem sentido.
Mauro Fonseca foi, ao mesmo
tempo, um menino à cata das Illuminations
que a poesia pode oferecer aos tempos sombrios e um homem cuja delicadeza não
resistiu às numerosas e agônicas saisons
en enfer do século XX. Sobre ele, não tenho mais palavras a serem ditas,
exceto aquelas com que Murilo Mendes encerra o “retrato-relâmpago” de São
Francisco de Assis: “... um inconformista, um rebelado, um fuorilegge; tal seu mestre”.
Juiz
de Fora, 21 de maio de 2015,
no
aniversário de 53 anos do poeta Mauro Fonseca
Entre o aborto e o parto: uma antologia,
obra organizada pelo filho do autor, Mauro Morais
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)
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