Prefácio
à antologia poética
Oceano
coligido (1980-2000), de Iacyr
Anderson Freitas
(São
Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 7-11).
Fernando Fiorese
1. Para além de
título desta antologia, a metáfora Oceano
coligido diz da poética de Iacyr Anderson Freitas. Não é outro o empenho do
poeta: coligir na simbólica do mar,
das águas em movimento, a dinâmica da vida, o embate entre memória e esquecimento.
Tanto no sentido próprio (recolher, juntar, reunir; contrair, apertar,
estreitar) quanto nas suas múltiplas figurações (adquirir, obter, ganhar;
concluir, deduzir; refletir em, passar pela memória, examinar; provocar,
causar, sofrer), o étimo latino colligere
destina esta obra coletânea aos riscos da ausência. O que afirma Ruy
Espinheira Filho no prefácio a Lázaro (1995)
– “São vários poemas – que também são, sem contradição, um só poema. Ou, se
quiserem, vice-versa” – caracteriza todos os demais livros do autor, de forma
que o ato de coligir (mesmo quando realizado por mãos engenheiras) enseja
lacunas no diário de bordo desse périplo poético de 20 anos. São “dias voados”
que, na sua ausência, convocam o leitor à procura da obra completa, mas também,
por circunstâncias fortuitas, à experiência na matéria-livro da perda, da
cesura e do silêncio, fundamentos da poesia deste “cronista da memória”,
conforme o epíteto que lhe atribuiu Carlos Nejar.
2. Como
assinalamos, também a poética iacyriana encontra a sua destinação na semântica
vária do verbo coligir. Trata-se de
realizar “a consumação do mar nos livros” (Primeiro
livro de chuvas, “Que a treva mesma”), recorrendo a um rigor formal – “Aqui
tens o rigor, visão e engenho / tão resumidos ao fulgor que finges” (Mirante, 3.) – e a uma linguagem
simbólica de tal modo elaborada que “esconde sempre / outro dédalo // aceso em
seu cavalo” (Colagem de bordo e outros
poemas, “Três horas”). De como soletra as imagens do mar, o poeta alcança
uma conciliação inaudita entre o concreto e o visionário, a geometria e a
vertigem. A simbólica do oceano comparece aqui em sua complexidade e
ambivalência. Seja lugar de desterro ou sítio de aventuras e de florescimento,
águas primordiais ou imagem do informe e do tenebroso, um meio de purificação
ou a própria potência destruidora – símbolo da “hostilidade de Deus”, como no Apocalipse de São João –, “outro é o
mar” para aquele que se abisma na indigência do tempo e na crise da linguagem.
Tal diz o poeta enquanto Sísifo: “acaso orfeu anfion? / não: seu canto é morte /
cacto / desolação” (Sísifo no espelho,
“As mãos gastam-se na cal”), pois o gosto apurado pelo/no verbo sabe da
linguagem sitiada pelas potências da loquacidade midiática e da lógica
cartesiana, sabe que a “palavra carece de pátria / lugar de raiz e eleição” (Exercício estrangeiro, “Pequeno diário
da palavra”), sabe que apenas “no exercício e na entrega / o mar floresce” (O aprendizado da figura, “No
jardim/IV”). E assim, no poema que empresta título a esta recolha, sintetiza o
destino do poeta num tempo de indigência:
inverte-se enfim a arquitetura,
onde havia pedra
resta agora outra figura:
ruína em que o oceano
se ajoelha e bate,
eternamente bate, mas
onde jamais se apura.
(Primeiro livro de
chuvas)
3. Nada breve a
onomástica de deuses, poetas, figuras bíblicas, pintores e heróis míticos. Mas
engana-se o leitor que atribua a esse recurso mera função classicizante. “A erudição
se enruste, vez e outra” (Nejar), e aos nomes de Odisseu, Bandeira, Cristo e Jezebel
vêm-se somar os de anônimos levantados do “chão comum” da memorablia do poeta: Anarina, Ulpiniano, Mariana, Nonato Correia,
apenas para citar alguns desse “alfabeto de perdas”. E dentre todos, é a partir
de uma quase ausência que opera a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Apenas uma
vez referido, um outro nome exsurge. Seja no seu traço saturnal e místico ou na
busca das sombras amadas do passado, seja no “solilóquio de perdas” (Fábio
Lucas) ou na “linguagem empenhada em testemunhar a realidade-em-trânsito”
(Sonia Brayner), é Orfeu quem assombra a poética iacyriana. A infância é a sua
Eurídice:
algo resiste em sua ausência
: esses olhos
esses pobres olhos foram seus um dia
o passado abre-se como um livro
ah
o passado é sempre um livro aberto
com uma página só
vazia
(O aprendizado da
figura, “No jardim/XXVI”)
Mas
ainda quando “O passado desata seus velames / sobre águas-vivas de terror e
gesso” (Mirante, 8.), Orfeu não
acolhe a inércia. Por isso o canto, para arrojar Argo ao oceano: “todo porto é
um abandono // e essa aventura de nunca estar / que é toda viagem / e esse não
ser que nos redime” (O aprendizado da
figura, “E foram dias de rigor”). Canto coletivo, de todos e de cada um,
pois a viagem desmerece o ego, então fluido em figurações, fugas e esfinges:
“pergunta é cerne de homem” (Exercício estrangeiro,
“Trilogia do gato”). Mesmo que resumindo em letras escuras a infância e o mar,
a voz plural do poeta nos convoca a “Uma procura que jamais se esconde, / que
não sabe sequer o que procura, / que desconhece até mesmo por onde / se esquivou
a sua própria aventura” (Mirante,
32). E, nas muitas personae que este
“exercício estrangeiro” nos oferta, compartilhamos também a busca “obstinada de
uma geometria” (Margarida Salomão), capaz de destinar a nau a outros
horizontes, de encontrar “um signo que é toda a infância” (O aprendizado da figura, “A primeira ilha”), de fazer do mundo um
lugar de habitação – ainda que “reste apenas uma nau, / sozinha, / e um dique”
(Messe, “Ao princípio”).
4. Como a dor
ou as pequenas mortes, a poesia nos desperta e sacode. De nada adianta rasgar
os calendários, condenar Orfeu às ilhas do exílio, ensurdecer o mar, pois “de
muito longe / os ventos nos empurram” (Messe,
“Não há missivas”) para os círculos da poesia. E se “até mesmo as leis têm seus
carnavais” (Mirante, 8.), chegará o
dia em que as verticais de Iacyr Anderson Freitas vençam a horizontalidade
vesga do mercado editorial brasileiro para que um número maior de leitores
possa experimentar esses dias de rigor e febre.
5. De Verso e palavra (1982) a Mirante
(1999), a poética iacyriana está a exigir mais do que estas notas ligeiras. Ao
menos em parte, a fortuna crítica que vem acumulando e a divulgação obtida para
além de nossas fronteiras fazem justiça ao exercício de resistência, afeto e
rigor que é toda a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Quanto a estas notas, que
tenham o mesmo destino reivindicado por Mallarmé para o “Préface” a Un coup des dés jamais n’abolira le hasard:
“Gostaria que esta nota não fosse lida, ou que, apenas percorrida, fosse logo
esquecida...”
Iacyr Anderson Freitas (Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, 1963) |
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