Fernando Fiorese
Prólogo
Cada vez que, convidado pelo autor ou editor, me
entrego à tarefa do prefácio, as mesmas questões assomam como pequenos
demônios: o que dizer ao leitor que não arrefeça ou rasure o espanto originário
que o espera nas próximas páginas? a quem interessam essas palavras que
pretendem anunciar a poesia que, entretanto, lhes falta? como fazer o prefácio
funcionar não tal fosse um guia de leitura ou manual de instruções, mas apenas
um mero dispositivo de passagem – uma porta talvez, sem fechadura ou tramela,
de dobradiças azeitadas e breve soleira – que enderece o leitor, sem percalços,
à cena da escrita? quando interrompê-lo, uma vez que o prefácio, tão-somente
por existir, é já um cúmulo, um disparate, uma monstruosidade? onde colocar
este texto que, sendo primeiro na ordem formal do livro, não apenas aspira ser,
mas é segundo (talvez último) na ordem da criação, sombra de signos? por que
perder-se – e perder – nesta prosa pobre, quando adiante nos aguarda um
labirinto tão mais equívoco e pródigo de passagens, curvas, desvãos, abismos e
mistérios?
Cena e arredores
Coisas da atriz, de
Raphaela Ramos, elege o circo e o teatro como cena da escrita. Não por acaso,
lugares onde, com o anteparo da máscara, o hipocrités (do grego, “intérprete de um sonho, de uma
visão; ator”) exibe ao público a deriva agônica entre ser e não-ser: “Sobre o
palco / deixo de ser / passo a ser” (“Paraíso”). Porque, em tais cenários, o
escondimento do eu civil é condição sine
qua non para a assunção e o vigor da personagem. Rasura-se a biografia do
eu íntimo para fazer existir a ficção do outro, a fantasia que o público
devora. Conquanto resguardada da boca famélica deste mesmo público, a dinâmica
do verbo atuar encontra-se na tensão
entre o rosto que se desfaz e o custoso engendrar da máscara. Neste sentido, a
lírica de Raphaela Ramos se inaugura no agón entre a mulher e a atriz,
elegendo como figurações da escrita as coxias – onde a atriz-mulher guarda suas
incertezas, dores e medos – e o alçapão do palco, “um lugar escuro”, dentro do
qual a mulher-atriz deposita suas coisas: “baú de relíquias”, “livro de
memórias” (“Coisas da atriz”).
Para o poietés
será mesmo difícil, senão impossível, desvencilhar-se do seu duplo originário, o hipocrités, aquele que desde os gregos faz do verbo carne, torna públicos os
sonhos e as visões grafados na reserva e no pudor da escrita. Tanto que, em
“Autopsicografia”, Fernando Pessoa desvela o quanto tem o poeta do ator:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Circo e teatro, bem o sabe Raphaela, são abreviaturas
do “mundo vasto mundo” – “Vejo-me entre quatro paredes muito estreitas / e,
ainda assim, gostaria de estar dentro” (“Deserto”). Mas esta vida ensaiada e
minúscula, mesmo “usando a pintura / para esconder a amargura” (“Picadeiro
parido”), é uma linha de fuga: “A linha me leva / E me alinho no sono / ou na
chuva de palavras” (“Épico”). Não a fuga como alienação, pois a poeta também
sabe o quanto de verdade há na mentira dramática: “Deixo então exposta
a profunda ferida / pois quanto mais me cubro / mais me sinto despida” (“Novelo
de lã”). Urge, pois, rasgar a “analfabeta verdade de papel” (“Verdades de
papel”) para dedicar à vida o amor fati
nietzscheano, para reencontrar a poesia tantas vezes negada:
[...]
A verdade vestiu-se de negro
não pode se ver, não obstante as mil pupilas
Quem a possuía carrega agora apenas o teatro
a imitação do que se espera ser e não é
a putrefação dos sufocados minutos
a aniquilação das esmagadas lágrimas
a proibição das temidas vontades
e um sorriso roto em lábios amarelos
Pobre de quem não suporta a nau concreta
mergulhando em rios com submarinos obtusos
Pobre de quem não se assume poeta
e vive metamorfoseando palavras
apenas para que elas não tenham o poder
de construir doloridas rimas
(“Poesia negada”)
O rosto sempre em fuga, a vida além de rubricas e
marcações, os ensaios de outros eus – são estes os modos de Raphaela Ramos
afirmar “a dor e a delícia de ser”, como um eterno retorno na diferença de um corpo em metamorfose. Ou
como réplica à provocação de Grotowski transcrita no poema “Deserto”: “Os
sapatos não deixam os pés viverem”. Porque a poesia
de Raphaela é desafio –
Venha, dor
apreciar a sua beleza
esculpida em minha face
Venha, dor
rodar vários pratos
e girar nos braços da fome
(“Entrega”)
– e entrega – “Ainda tenho palavras para
entregar / elas brotam da dor e se fazem adultas” (“Lembra, meu amor”). Assim
começa a iluminar-se o palco, “onde o desejo se instala e deixa na sombra os
dois lados da cena”, tal nos diz Roland Barthes. E sob a luz dos refletores, a
poeta grita a pergunta inelutável: “Quem me calçou tanto assim afinal?”
(“Deserto”).
Dramatis personae
“O quarto escuro ficou para
trás / cheio de coisas que não mentem a minha história” (“Adeus e melodia”).
Sem denegar os papéis históricos impingidos à mulher, Raphaela Ramos faz de Coisas da atriz um cúmulo de muitos e
vários outros, ciosa das lições de Adélia Prado – “Mulher é desdobrável” – e de Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher: torna-se”. De forma que,
“bem longe do país das maravilhas” (“Alice”), a poeta desdobra-se em Julieta,
Jocasta, Jandira. Também naquela que reza pelos pelos do amante (“Pelos”) e
inveja a tatuagem na pele dele (“Tatuagem”). Ou ainda, na mulher calejada – “De
tanto escutar, emudeço / De tanto apanhar, endureço” (“Calo”) – e na inocente
menina de “Vestido imaginário”:
Quando era menina
de poucas coisas saber
muitas coisas criar
questionava mamãe que roupa devia usar
em dia de festa
E mamãe respondia:
– aquela, cor do céu com os peixinhos!
Eu criança me perdia no armário
horas procurando a brincadeira materna
Coisas da atriz, memória da
mulher. Trata-se de um inventário das dramatis
personae que se impuseram ao deuxième
sexe no decorrer da história do Ocidente, acrescido
de um plural de papéis que a mulher foi inventando no tornar-se mulher.
Trata-se de reconhecer os sapatos, seus cadarços, seus fechos, seus apertos,
seus calos, para descalçá-los e deixar que vivam os pés e todo o corpo. Assim é
que Raphaela, acolhendo as múltiplas figurações da mulher – desde aquela que
“pendurou o passado no quintal” (“Resfriado”) até a outra “tão enxertada de
frases” (“1968”)
–, inaugura um corpo em reforma:
Meu corpo está em reforma
transfiguro seus pequenos pedaços
quero deixá-lo pronto para o baile
[...]
Eu tiro pedras, poeiras, prisões
visto roupa branca, retoco as cores do rosto
quero estar pronta para o baile
pois sei que ele virá em noite infinita
(“Noite clara e infinita”)
E virá o baile para o
desdobrar das máscaras, para a “borboleta no cabelo” (“Enfeite”), para
“inteirar a vida” (“Equilíbrio”). Porque, no baile, realiza-se a fantasia, não
como negação do real, mas como, ainda segundo Barthes, “uma volta de desejos,
de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda,
e frequentemente só se cristalizam através de uma palavra”. E são estes desejos
e imagens, no mais das vezes imantados por um Eros velado, que Raphaela Ramos
muda em palavras para entregar ao leitor suas sete (e mais) faces, desafiando-o
à decifração de um enigma sempre enovelado.
Último ato
Assim, no próprio ato da escrita, encontro a
figuração e o destino do que aqui se escreve. E advirto o leitor: neste caso, o
prefácio não é mais do que uma contracena
para as falas de Raphaela Ramos, no sentido que o Dicionário Houaiss atribui a este vocábulo: “posição ou sequência
de posições secundárias de um ator no espaço cênico, ou diálogo simulado que
acontece em segundo plano, paralelamente à encenação principal”.
Prefácio do livro
Coisas da atriz (2010), de Raphaela Ramos