segunda-feira, 30 de julho de 2012

Contracena para Raphaela Ramos


Fernando Fiorese

Prólogo

Cada vez que, convidado pelo autor ou editor, me entrego à tarefa do prefácio, as mesmas questões assomam como pequenos demônios: o que dizer ao leitor que não arrefeça ou rasure o espanto originário que o espera nas próximas páginas? a quem interessam essas palavras que pretendem anunciar a poesia que, entretanto, lhes falta? como fazer o prefácio funcionar não tal fosse um guia de leitura ou manual de instruções, mas apenas um mero dispositivo de passagem – uma porta talvez, sem fechadura ou tramela, de dobradiças azeitadas e breve soleira – que enderece o leitor, sem percalços, à cena da escrita? quando interrompê-lo, uma vez que o prefácio, tão-somente por existir, é já um cúmulo, um disparate, uma monstruosidade? onde colocar este texto que, sendo primeiro na ordem formal do livro, não apenas aspira ser, mas é segundo (talvez último) na ordem da criação, sombra de signos? por que perder-se – e perder – nesta prosa pobre, quando adiante nos aguarda um labirinto tão mais equívoco e pródigo de passagens, curvas, desvãos, abismos e mistérios?

Cena e arredores

Coisas da atriz, de Raphaela Ramos, elege o circo e o teatro como cena da escrita. Não por acaso, lugares onde, com o anteparo da máscara, o hipocrités (do grego, “intérprete de um sonho, de uma visão; ator”) exibe ao público a deriva agônica entre ser e não-ser: “Sobre o palco / deixo de ser / passo a ser” (“Paraíso”). Porque, em tais cenários, o escondimento do eu civil é condição sine qua non para a assunção e o vigor da personagem. Rasura-se a biografia do eu íntimo para fazer existir a ficção do outro, a fantasia que o público devora. Conquanto resguardada da boca famélica deste mesmo público, a dinâmica do verbo atuar encontra-se na tensão entre o rosto que se desfaz e o custoso engendrar da máscara. Neste sentido, a lírica de Raphaela Ramos se inaugura no agón entre a mulher e a atriz, elegendo como figurações da escrita as coxias – onde a atriz-mulher guarda suas incertezas, dores e medos – e o alçapão do palco, “um lugar escuro”, dentro do qual a mulher-atriz deposita suas coisas: “baú de relíquias”, “livro de memórias” (“Coisas da atriz”).    
Para o poietés será mesmo difícil, senão impossível, desvencilhar-se do seu duplo originário, o hipocrités, aquele que desde os gregos faz do verbo carne, torna públicos os sonhos e as visões grafados na reserva e no pudor da escrita. Tanto que, em “Autopsicografia”, Fernando Pessoa desvela o quanto tem o poeta do ator:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Circo e teatro, bem o sabe Raphaela, são abreviaturas do “mundo vasto mundo” – “Vejo-me entre quatro paredes muito estreitas / e, ainda assim, gostaria de estar dentro” (“Deserto”). Mas esta vida ensaiada e minúscula, mesmo “usando a pintura / para esconder a amargura” (“Picadeiro parido”), é uma linha de fuga: “A linha me leva / E me alinho no sono / ou na chuva de palavras” (“Épico”). Não a fuga como alienação, pois a poeta também sabe o quanto de verdade há na mentira dramática: “Deixo então exposta a profunda ferida / pois quanto mais me cubro / mais me sinto despida” (“Novelo de lã”). Urge, pois, rasgar a “analfabeta verdade de papel” (“Verdades de papel”) para dedicar à vida o amor fati nietzscheano, para reencontrar a poesia tantas vezes negada:

[...]
A verdade vestiu-se de negro
não pode se ver, não obstante as mil pupilas

Quem a possuía carrega agora apenas o teatro
a imitação do que se espera ser e não é
a putrefação dos sufocados minutos
a aniquilação das esmagadas lágrimas
a proibição das temidas vontades
e um sorriso roto em lábios amarelos
Pobre de quem não suporta a nau concreta
mergulhando em rios com submarinos obtusos
Pobre de quem não se assume poeta
e vive metamorfoseando palavras
apenas para que elas não tenham o poder
de construir doloridas rimas
(“Poesia negada”)

O rosto sempre em fuga, a vida além de rubricas e marcações, os ensaios de outros eus – são estes os modos de Raphaela Ramos afirmar “a dor e a delícia de ser”, como um eterno retorno na diferença de um corpo em metamorfose. Ou como réplica à provocação de Grotowski transcrita no poema “Deserto”: “Os sapatos não deixam os pés viverem”. Porque a poesia de Raphaela é desafio –

Venha, dor
apreciar a sua beleza
esculpida em minha face
Venha, dor
rodar vários pratos
e girar nos braços da fome
(“Entrega”)

– e entrega – “Ainda tenho palavras para entregar / elas brotam da dor e se fazem adultas” (“Lembra, meu amor”). Assim começa a iluminar-se o palco, “onde o desejo se instala e deixa na sombra os dois lados da cena”, tal nos diz Roland Barthes. E sob a luz dos refletores, a poeta grita a pergunta inelutável: “Quem me calçou tanto assim afinal?” (“Deserto”).

Dramatis personae

“O quarto escuro ficou para trás / cheio de coisas que não mentem a minha história” (“Adeus e melodia”). Sem denegar os papéis históricos impingidos à mulher, Raphaela Ramos faz de Coisas da atriz um cúmulo de muitos e vários outros, ciosa das lições de Adélia Prado – “Mulher é desdobrável” – e de Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher: torna-se”. De forma que, “bem longe do país das maravilhas” (“Alice”), a poeta desdobra-se em Julieta, Jocasta, Jandira. Também naquela que reza pelos pelos do amante (“Pelos”) e inveja a tatuagem na pele dele (“Tatuagem”). Ou ainda, na mulher calejada – “De tanto escutar, emudeço / De tanto apanhar, endureço” (“Calo”) – e na inocente menina de “Vestido imaginário”:

Quando era menina
de poucas coisas saber
muitas coisas criar
questionava mamãe que roupa devia usar
em dia de festa
E mamãe respondia:
– aquela, cor do céu com os peixinhos!
Eu criança me perdia no armário
horas procurando a brincadeira materna

Coisas da atriz, memória da mulher. Trata-se de um inventário das dramatis personae que se impuseram ao deuxième sexe no decorrer da história do Ocidente, acrescido de um plural de papéis que a mulher foi inventando no tornar-se mulher. Trata-se de reconhecer os sapatos, seus cadarços, seus fechos, seus apertos, seus calos, para descalçá-los e deixar que vivam os pés e todo o corpo. Assim é que Raphaela, acolhendo as múltiplas figurações da mulher – desde aquela que “pendurou o passado no quintal” (“Resfriado”) até a outra “tão enxertada de frases” (“1968”) –, inaugura um corpo em reforma:

Meu corpo está em reforma
transfiguro seus pequenos pedaços
quero deixá-lo pronto para o baile

[...]

Eu tiro pedras, poeiras, prisões
visto roupa branca, retoco as cores do rosto
quero estar pronta para o baile
pois sei que ele virá em noite infinita
(“Noite clara e infinita”)

E virá o baile para o desdobrar das máscaras, para a “borboleta no cabelo” (“Enfeite”), para “inteirar a vida” (“Equilíbrio”). Porque, no baile, realiza-se a fantasia, não como negação do real, mas como, ainda segundo Barthes, “uma volta de desejos, de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda, e frequentemente só se cristalizam através de uma palavra”. E são estes desejos e imagens, no mais das vezes imantados por um Eros velado, que Raphaela Ramos muda em palavras para entregar ao leitor suas sete (e mais) faces, desafiando-o à decifração de um enigma sempre enovelado.

Último ato

Assim, no próprio ato da escrita, encontro a figuração e o destino do que aqui se escreve. E advirto o leitor: neste caso, o prefácio não é mais do que uma contracena para as falas de Raphaela Ramos, no sentido que o Dicionário Houaiss atribui a este vocábulo: “posição ou sequência de posições secundárias de um ator no espaço cênico, ou diálogo simulado que acontece em segundo plano, paralelamente à encenação principal”.

Prefácio do livro
Coisas da atriz (2010), de Raphaela Ramos
Funalfa Edições
Blog da autora: http://coisasdaatriz.blogspot.com.br/

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O açúcar amargo de Fernando Dusi Rocha


Fernando Fiorese

“Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” Diante do grito trágico do Louco de Nietzsche, o fardo dos que creem é mais pesado. Porque acumula em si, a um só tempo, a realização do trabalho de luto e a expiação da culpa pelo assassínio. Sob o signo deste duplo pesar, Fernando Dusi Rocha opera nos poemas deste Crisol com açúcar os paradoxos e os paroxismos da condição humana, demasiado humana, face ao “desterro sem data de Deus”. Não como um lírico religioso marcado pela fé inabalável e pela esperança de salvação, mas como um poeta, de tal forma “emburrado com a eternidade” que desistiu “de ser profeta de homens / ... e de esperar pelo / batismo que nunca chega”. Não há mesmo como afirmar a poesia como análogon da profecia “entre escombros da criação”, no “paraíso dissoluto incompreensível”, uma vez que o êxtase prosaico vigora sobre a transcendência e o canto deste “luto despudoradamente humano” não é mais que “um zumbido do silêncio de Deus”, anunciando “o paradoxo sem paradoxo do mundo”. Ao poeta cumpre entregar-se nu às verdades desveladas pela queda profana e vulgar que nos coube: “Até que chegue sobre mim / o negrume de uma asa. Asa de águia ou de anjo / uma aspa em ebulição a permitir-me acreditar / no dia do sagrado e no irrompimento de Deus”. Embora o açúcar seja aqui não mais que um gracejo, este crisol de Fernando Dusi Rocha não acolhe apenas o agón da morte de Deus, mas também mistura e apura exemplares de uma lírica erótico-amorosa muitas vezes insólita e despudorada, exercícios de metalinguagem que revelam o seu vasto repertório artístico-literário e memórias da infância mineira, sempre com toques de humor negro. 

Orelha do livro
Crisol com açúcar (2011), de Fernando Dusi Rocha
Editora 7Letras