terça-feira, 15 de dezembro de 2015

QUASE DEZ COISAS QUE NÃO SEI ACERCA DA CRÔNICA

Fernando Fiorese

Para Teresa Neves,
Fernando Albuquerque e
José Geraldo Batista


I

Não sei se a crônica é um gênero literário ou textual. E esta minha ignorância literária e linguística faz da crônica uma questão que transtorna todo o saber-sabido – teorias, conceitos, definições – e aciona o pensar em direção a horizontes inéditos.

II

Não sei se o valor de uma crônica está em alcançar a pequena eternidade do livro ou na morte súbita junto com os acontecimentos que registra, se está em elevar-se do chão comum para os céus da lírica ou em baixar a poesia até a lama do prosaico.

III

Não sei se a crônica habita uma encruzilhada, uma fronteira ou o campo de batalha entre jornalismo e literatura. Porque tudo que tem de jornalismo beira o antijornalístico. Porque dança bêbada nos limites do campo literário, para além de quaisquer teorizações.

IV

Não sei se faz sentido desvelar na crônica, para regozijo dos exegetas, quaisquer índices de realidade, ficção, lirismo, biografia, quando todo o trabalho do texto é baralhar e traduzir, fraudar e instruir, entregar e iludir, cumular e subtrair – enfim, fazer cifra (em todos os sentidos verbais e substantivos deste vocábulo-enigma) da vida e seus possíveis.

V

Não sei qual a serventia de ordenar a crônica em tipos – lírica, humorística, filosófica, biográfica, narrativa, dialógica, descritiva, histórica, metalinguística etc. –, mas poderia inventar outros sem-número, dado o pendor que tenho para operações de cunho compilatório e enumerativo.

VI

Não sei se a crônica seria uma espécie de caçula de uma família que tem a Poesia como primogênita e o Conto como filho do meio, os três gerados pelo Mito e pela Música. Mesmo porque, a prole deste casal é bem mais numerosa, sem contar as relações extraconjugais. Talvez a crônica seja apenas um rebento bastardo.

VII

Não sei se a crônica exige de seus autores o corpo aventureiro da juventude ou o espírito aguçado da madureza. De qualquer forma, a crônica brasileira se alimentou tanto das diatribes políticas e peripécias amorosas do jovem correspondente de guerra Rubem Braga quanto do senso grave, cismarento e meticuloso do velho Carlos Drummond de Andrade, observador resguardado no escritório; tanto da pornografia angelical (logo, adolescente) de Nélson Rodrigues quanto da sua contrapartida metafísica, moral e etária, Otto Lara Resende.

VIII

Não sei se a crônica, ao falar do local e do circunstancial, aspira ao universal e ao eterno. Porque a crônica é tão chã, tão familiar, tão nossa que lhe basta dar conta de uma rua, de um bairro, de uma cidade, dos acontecimentos e dos personagens que, mal alcançam a esquina, já se ressentem do clima e do idioma de terra estrangeira. Em verdade, a crônica é um animal doméstico. Sem pedigree.

IX

Não sei se a crônica deseja ou merece a leitura demorada e inteira do especialista – óculos de grau na ponta do nariz, mãos afeitas à escrita de notas marginais. Talvez a crônica espere não mais que o olhar breve, oblíquo e distraído que se dedica às bulas de remédio e aos manuais de instrução.

Juiz de Fora, vésperas do outono, 2015

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

MORRER EM BELEZA: A ARTE DE AMAR DE MARIA DIVA BOECHAT


Prefácio do livro Sobre amor e ervilhas,
de Maria Diva Boechat
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)

Fernando Fiorese

Amore, in qual scola,
da qual mastro s’apprende
la tua sì lunga e dubbia arte d’amare?
Torquato Tasso,
Aminta, ato II, cena III

Tudo está dito. No Ocidente, ainda que, vez ou outra, uma Musa “inédita” possa surpreender a poesia [1], parece-me que os mitos das sociedades tradicionais (incluindo o repertório imensurável das narrativas bíblicas), as fábulas e os contos de fadas já disseram tudo. Assim, escrever talvez não seja mais do que, por um lado, a busca de entonações distintas e hodiernas para o já-dito e, por outro, a tentativa quase vã de escavar as incontáveis imagens e metáforas engendradas pelas culturas orais, as quais acabaram por se perder entre os fósseis cumulados ao longo do penoso trajeto entre a voz e a escrita.
Os poemas coligidos por Maria Diva Boechat neste Sobre amor e ervilhas fazem regressar os mitos de antanho e as narrativas infantis, não para repeti-los, mas para transtornar, acrescer, encobrir, deformar, desdizer, diminuir, desdobrar, torcer ou confundir o tantas vezes dito e redito. Trata-se de uma manobra para alcançar a diferença do aqui e agora, de uma artimanha forte e desrespeitosa – porque a poeta não é mulher de respeitos – para apropriar e deslocar a tradição conforme as figurações e necessidades do contemporâneo. Na sua matéria flexível, derivante e instável, ainda quando sob registro escrito, os mitos deixam-se moldar pelas mãos de outros tempos, pelos cuidados de outras vozes.
Não por acaso, personagens fictícias (ou quase) – Ariadne, Dalila, Dionísio, as Fúrias, Helena, Páris, Prometeu, Rapunzel, Sansão, Sêmele – se juntam sem distinção a figuras reais – Chico Buarque, Chet Baker, Lucien Freud, Gaudí, Munch – e aos amigos da autora. Não por acaso, cenários prosaicos – a casa da infância, o quarto conjugal, a oficina do escultor Brennand, as paisagens marinhas, “a cidade toda em contramão” – se fundem e confundem com lugares fabulosos – Éden, Babel, Labirinto. Porque tais personae e espaços são motor e matriz, agentes e cenários do mito maior de que trata Maria Diva Boechat “com a mais pura descrença / e desespero”, como confessa no poema “Prece”, mas também “com galhofa e galhardia” (“Trágico”).
Delicadeza e barbárie, alegria e horror, beleza e guerra, ficção e confissão. Tais são os substantivos – porque, no desejo vigoroso e diligente de seus verbos, o mito é sempre substantivo – que a poeta reúne e dispersa para operar o mito da paixão, cuja abreviatura vigorosa e vertical nos dá no poema “Amor”: “Flor- / CARNÍVORA”. E se digo paixão, ao invés de amor, é para demarcar a distância e a diferença entre Eros (amor concupiscientiae ou vulgaris) e seu desdobramento espiritual, a Caritas (ou amor divinus). Porque os avances da metafísica cristã no empenho de domesticar o Eros grego, de aplainar as vertigens do amor natural, de subjugar o corpo e suas paixões, tornando-as patologias, encontraram na poesia e no imaginário um lugar de resistência par excellence. Talvez pela ousadia humana, demasiado humana, de professar o avesso do Evangelho no presente da lírica: E a carne se faz verbo e habita entre nós... [2] Ousadia que não falta à poeta:

Nada existe além da carne:
pulsa por pernas e bundas.
Invólucro do morto –
incrédulo em compreensões.

Quando o tempo
enferruja as engrenagens,
o autômato se esgueira pelos cantos
assombrando as carnes frescas
que ainda desfilam sua glória.
(“Autômato”)

Na lírica de Maria Diva Boechat, Eros exsurge com as forças que rubricam o fruto do amor clandestino de Afrodite e Ares (Vênus e Marte para os romanos), de forma que, na flor da beleza, restará sempre a rasura maiúscula e indelével da guerra, da carnificina. Daí a incidência quase obsessiva nesses poemas do vocábulo “corpo”, secundado por signos que traduzem antes a matéria bruta do que a simbólica do mesmo: carne, olhos, boca, vísceras, pernas, sêmen, saliva, unhas, sangue, nervos, entranhas, veias, coxas, língua, ouvidos, dentes, pele, face, cabelos, pé, juntas, calcanhares, dedos, bundas. Sem olvidar outros tantos substantivos, verbos e adjetivos que o amor erótico soletra na carne, tão próximos do júbilo quanto da morte. Na medida em que propugna uma escrita do corpo, o poema “Cartas ao mar” parece desvelar a poética da autora:

Ao quebrar a garrafa:
uma carta.
Em mim, três desejos despertos:
fonemas, letras, sílabas...

Ao meu querer,
palavras escorrem,
compõem o belo e o terrível do corpo.

Diante do verbo encarnado,
o espanto:
                  fiz-me réplica.

Mas mudar o corpo em verbo não indica qualquer linha de fuga, não implica qualquer metafísica. (Aliás, aqui a “Metafísica” comparece entre a blague e o banal: “– A bolsa ou a morte! // Para resguardar minha morte / entreguei bolsa, dedos, anéis, dente de ouro...” Ou como a última das “Metas”: “Metáforas / Metamorfoses / Metafísicas”.)  Pela palavra, o corpo não se eleva nem se avilta, não se redime nem se perde – continua sendo o que é: a beleza maior e o campo de batalha onde digladiam as rapinas do tempo, as rugas da memória, os demônios da sabedoria, os dédalos do outro, as urgências do desejo, as iluminações da infância, as engrenagens do tédio, os desconcertos da linguagem, as fúrias de nossos crimes mais diários.

A obra...

O deus que assombra e peleja no corpo dos poemas deste Sobre amor e ervilhas é, decerto, o Tempo, o “Crono de curvo pensar” a que refere Hesíodo na Teogonia [3] (v. 137), atribuindo-lhe, por um lado, a gênese casual de Afrodite, deusa da beleza e do amor sensual, das Erínias (as Fúrias dos romanos) e de outros colossos divinos quando da castração do pai Urano e, por outro, a devoração dos próprios filhos (cf. Teogonia, v. 178-206/459-462). Porque “o tempo ruge e morde” (“Liberdade”). O famélico Crono não mantém “vigilância de cego, mas à espreita” (Teogonia, v. 466) continua a devorar todos nós, os mortais, desmantelando a beleza dos corpos e, quando muito, substituindo-a pela “Ingaia ciência”, este enigma aclarado por Carlos Drummond de Andrade [4]. Não são outras a revolta e a questão da poeta em “Maçã de ouro”:

Quando eu não for mais objeto de desejo
que barganhas poderei fazer?

Enquanto Helenas ensejarem guerras
o que restará a meu corpo envelhecido
além da maldição da sabedoria?

Seja do jardim das Hespérides ou de Éris, deusa da discórdia, a maçã de ouro não é coisa destinada aos mortais. A nós restam as breves eternidades, as belezas transitórias e casuais que possam ensejar um “Éden”, ainda que menor e pessoal: “Quando brotam belezas / entre a matéria esgarçada da vida, / quase perdoo a existência”. Fazer guerra contra o “Horologista” em nome da paixão e da beleza é a mais paradoxal das tarefas: “Luto pela beleza // beleza, prenúncio de luto” (“Aniquilamento”). Mas apenas na carne viva desta luta luminosa e desigual é possível arrostar a dor da ausência de beleza, assinalada nos poemas abaixo:

Memória

O que mais me dói:
no instante em que morreu,
faltava-lhe um botão na camisa.

Conjugal

O desbotar da beleza é dor física.

Contra o murchar do frescor
analgésicos fraquejam.

Ao fim do primeiro ato,
a realidade fratura conexões elaboradas.
O bifurcar dos caminhos impõe
o desmazelo das entranhas.
Doem as vísceras.

Resta o consolo do café barato.
Plasticidade, apenas às flores sobre a mesa.
    
O mesmo viés trágico da existência humana que Maria Diva Boechat empresta dos mitos greco-latinos contamina também o universo das fábulas e contos de fadas. Ainda quando telúrica e luminosa – “Do barro retornarás com o sopro da alegria” (“Meninos na chuva”) –, a memória da meninice não mitiga as dores do “desbotar da beleza” e a infância mesma não se dá como um tempo reconquistável:

Surda e sangrando
procuro a casa da infância.
Porém, o anjo deixou torto
o caminho para os vitrais coloridos.
Aguardam-me frios azulejos.
(“Liberdade”)

Não é possível renunciar
ou reaver a infância.
(“Trágico”)

Assim, as narrativas guardadas na memória e perdidas com a infância se pervertem em figuração do desejo erótico, como no caso de “A cigarra e a formiga” –

Na noite quente
a indiferença estudada
de tuas pernas
desavergonhadamente
expostas
é provação para meus nervos em flor.

A primavera chega
me descobrindo teu corpo
e a insuportável espera
por tuas pernas quedando-se exaustas
sobre as minhas.

Desdenho o inverno.
Quero rebentar de cantar
com tuas pernas cruzando
meus caminhos.

– ou ganham o peso e a gravidade que a madureza impõe à consciência:

Impossível sono.
Embora as tantas camadas de subterfúgios,
imprecisa culpa
espeta a madrugada.
(“A princesa e a ervilha”)

Embora sempre a menor, a palavra é o modo da poeta de fazer corpo para o amor, de surpreender a beleza em fuga, de afrontar o tempo predador, de não morrer de delicadeza. Afinal, Eros resiste no séquito de Afrodite e, com as armas de Ares, defenderá a beleza, ainda que amarga, corruptora, dolorosa, lutuosa, violenta, assustadora. “– Quero morrer em beleza”, brada a paixão no poema “Fatalidade” do esquecido António Botto [5]. E de modos complementares e adversativos nas páginas que seguem.

Juiz de Fora, outono de 2015

... e a autora


Notas

[1] Lembro a saudação que, na “Ode triunfal”, o engenheiro sensacionista de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos”, dirige à Musa máquina: “Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!” (PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1983., p. 242). E ainda alguns versos da “Ode marítima”: “Nada perdeu a poesia. E agora há mais as máquinas / Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida / Comercial, mundana, intelectual, sentimental, / Que a era das máquinas veio trazer para as almas” (Idem, p. 267).
[2] No “Evangelho segundo São João”, capítulo 1, versículo 14, “E o Verbo se fez carne, / e habitou entre nós...” (A BÍBLIA de Jerusalém. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulinas, 1989).
[3] HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
[4] “A madureza, essa terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela, // a madureza vê, posto que a venda / interrompa a surpresa da janela, / o círculo vazio, onde se estenda, / e que o mundo converte numa cela. // A madureza sabe o preço exato / dos amores, dos ócios, dos quebrantos, / e nada pode contra sua ciência // e nem contra si mesma. O agudo olfato, / o agudo olhar, a mão, livre de encantos, / se destroem no sonho da existência” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 18).
[5] BOTTO, António. As canções de António Botto. Lisboa: Livraria Bertrand, 1956, p. 84.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

DEZ COISAS E MAIS UMA SOBRE A CARTA

Fernando Fiorese


1.

A carta é uma máquina perfeita. Nós é que, às vezes, emperramos a sua mecânica alada com palavras de açúcar ou veneno, de urgência ou etiqueta.

2.

Escrever uma carta é sem pausa. E continua sem nós por dias e semanas de distância, a letra lenta a procurar um par para a dança.

3.

Por estas mal traçadas linhas é um lugar-comum que deveria vir grafado no cabeçalho de toda carta digna deste nome. Como um preito ao escrever só e desarmado.

4.

Esperar uma carta é como estar doente do outro. Daí o ambiente infantil e hospitalar que domina e faz a casa arfar a horas contadas.

5.

Toda carta de amor, desde as dobras do envelope até as volutas da caligrafia, deve ter um estudado desleixo, como fosse o acaso comum de uma flor furtada ao jardim vizinho.

6.

Para quem sabe, receber uma carta muda o luto em secreta alegria. Mas abrir e ler exige atravessar outras muitas distâncias.

7.

Na sua elegante gramática, os verbos da carta são todos bitransitivos. Alguns fogem à regra: rasgar, unhar, amassar, extraviar, queimar, esconder, rasurar.

8.

No princípio é o envelope e tudo o que ele antecipa. Convém, no entanto, considerar que nódoas, rasuras e rasgos são, não raro, apenas nódoas, rasuras e rasgos. Também o perfume.

9.

Para ler uma carta, suspenda as trombetas do ordinário, guarde-se nas suas sete solidões, esteja inteiro nesta perigosa operação de armar e desarmar o horizonte. Para ler uma carta é preciso ter olhos, mãos, fígado, pulmões, sexo, rins, unhas – enfim, um corpo cabal.

10.

Na verdadeira carta – sempre manuscrita –, desvelam-se dor e alegria, gesto e afeto, vida e vigor. Trata-se de uma presença. Quando impressa, muda em correspondência – deselegância e vazio.

Mais uma

Somos os rituais que perdemos, como cartas à deriva na velocidade de um tempo que não sabe a espera nem a delicadeza de se dar num envelope.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

DO CRONISTA ENQUANTO ESPIÃO


(ou Nove considerações de todo inúteis para ler este livro)

Prefácio do livro 
Rubem Braga com a FEB na Itália:
crônicas-reportagens, literatura da notícia,
de José Geraldo Batista
(Curitiba: Prismas, 2014)

José Geraldo Batista na Casa dos Braga
(Cachoeiro do Itapemirim  ES) 

Fernando Fiorese

Nove

Todo prefácio é inútil. E ainda que se lhe atribuam numerosas funções – como têm feito desde Aristóteles (Téchne retoriké, circa 350-335 a.C.) até Gérard Genette (Seuils, 1987) –, prefácio só funciona quando inútil e anterior. O prae do termo em latim (praefatĭo, -ōnis) e seus similares ante e pro – presentes nos sinônimos anteâmbulo, antelóquio, apresentação, preâmbulo, prefação, preliminar, prelúdio, proêmio, prolegômenos, prólogo, prolusão – referem tal anterioridade, e talvez encontremos nesta o modo como e por que funciona o prefácio na sua brutal e inelutável inutilidade. Assim poderia dar conta da questão que me espreita e aciona – e por isto endereço aos eventuais leitores: por que me pedem e por que escrevo um prefácio, mesmo sabendo tratar-se de um inutensílio textual?
No caso deste prefácio, devo o pedido à generosidade do autor, José Geraldo Batista, decerto uma retribuição a maior pela orientação da tese de doutoramento que ora muda em livro. E se o escrevo não é apenas para estar à altura do convite, mas porque escrevê-lo é a única resposta que posso dar à questão antes referida, uma resposta decerto falha e transitória – melhor, no entanto, que a negativa ou o silêncio. Se o escrevo é porque confio que, no seu caráter inútil e anterior, o prefácio empresta ao leitor um lugar incomum, posto que não precisa existir. Mas quando existe figura uma zona de fronteira onde descansar o corpo das bagagens e reaver as forças para a viagem que importa.
Tal afiança Umberto Eco em Sei passeggiate nei boschi narrativi (1994), “todo texto é uma máquina preguiçosa que pede ao leitor para fazer uma parte do seu próprio trabalho”. Assim, todo prefácio não é mais que a soleira desta casa de máquinas paradas, sempre à espera da energia laboriosa do leitor para entrar em operação. Mesmo inútil e anterior ao tour de force da leitura, o prefácio se dispõe como sombra da obra e, deste modo, oferece ao leitor o tempo preciso e o clima ameno para ajuntar as forças necessárias à ignição do texto-máquina.

Oito

A zona de fronteira é também o lugar da crônica no concerto dos gêneros da escrita. Com parca bagagem, muitos passaportes e corpo indecidível, a crônica transita do registro dos acontecimentos cotidianos até o poema em prosa, com visitações à narrativa curta, ao humor, à crítica (política, de costumes, dentre outras), à reflexão filosófica, à memorialística, ao testemunho etc. Entre a objetividade jornalística e as potências do imaginário, a crônica é bailarina na corda bamba entre o fato e a ficção, sempre zombando da escolástica adaequatio rei et intelectus, sempre reenviando a imaginação à realidade. Ainda que seja uma pausa na proliferação desenfreada de informações, a crônica não refresca. Ao contrário, transtorna tanto os manuais de literatura quanto a fácil dicotomia de verdade e mentira.

Sete

Contrabandistas, exilados, desertores, prostitutas, alienados, traficantes, andarilhos, fugitivos, soldados e espiões – sem qualquer julgamento moral ou analogias indevidas – são habitantes típicos das zonas de fronteira. De qual destes tipos mais se aproximaria a figura do cronista? Talvez do contrabandista, carregando cargas ilícitas do jornalismo para a literatura (e vice-versa). Talvez do exilado que, abandonando o território prosaico da imprensa, não quer mais que um visto provisório para o país da poesia. Talvez do alienado, à deriva na terceira margem do rio da escrita... Decerto do espião, a cujas características específicas assim refere José Castello: “O cronista é um agente duplo: trabalha ao mesmo tempo para os dois lados, e nunca se pode dizer, com segurança, de que lado ele está. Na verdade, ele não está em nenhuma das duas posições, nem da verdade nem na da imaginação – mas está ‘entre’ elas” (As feridas de um leitor, 2012).

Seis

A guerra será sempre uma zona de fronteira onde abundam os tipos citados e muitos outros. Tanto que, na crônica “Véspera de S. João no Recife”, assombrado pela sua primeira experiência como correspondente de guerra durante a Revolução Constitucionalista de 1932, Rubem Braga (1913-1990) reitera esta analogia: “... eu era um espião da vida, no meio da morte. Eu ainda não tinha vinte anos, não tinha mais nenhum deus para me entender depois da morte, não tomava banho há um mês, estava sujo e magro, meu lápis de repórter quebrou a ponta. Havia esse mesmo crepitar de fogos pela vasta noite, e, junto dos acantonamentos, as fogueiras se acendiam para os soldados gelados. Meu papel de repórter estava sujo da terra das trincheiras, eu já não escrevia nada. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer sorrir, eu não reconhecia aliados nem inimigos; apenas via homens pobres se matando para bem dos homens ricos; apenas via o Brasil se matando com armas estrangeiras” (O conde e o passarinho, 1936). 

Cinco

O vocábulo “espião” alcança o português através do italiano spione, derivado de spia, substantivação do verbo spiare. Para encurtar o percurso etimológico deste termo, que passa pelo francês antigo espier (a partir do frâncico ou do proto-germânico spëhon), diga-se logo da sua origem latina no verbo specǐo, -ěre (avistar, ver, olhar), provavelmente advindo do grego skopeýo, com inversão da raiz. Fato é que muito do étimo foi mantido nas línguas ocidentais – spion (alemão), espia (castelhano), espion (francês), spy (inglês) etc. –, ainda que o trabalho das passagens entre tantos idiomas tenha rasurado, abreviado ou silenciado alguns dos sentidos originários do verbo grego (skopeýo): observar de longe, avistar; mirar, ter por fim, aspirar a; ter cuidado, velar por, preocupar-se com; olhar, examinar, observar, explorar, espiar; refletir, julgar, investigar; precaver-se; perguntar, informar-se. Confio que, a partir deste elenco de significados, o leitor saberá desdobrar as possíveis correspondências entre as tarefas do cronista e do espião, em particular no cenário de guerra desvelado pela obra estudada por José Geraldo Batista neste Rubem Braga com a FEB na Itália: crônicas-reportagens, literatura da notícia.

Quatro

No teatro de operações da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), outra vez o repórter Rubem Braga se faz “espião da vida, no meio da morte”, contrabandista da civilização nos campos italianos da barbárie, exilado da paz à cata do lírico que possa existir na mais bruta e cabal tragédia. Para tanto, cumpre ao correspondente de guerra inventar um modo de ser cronista nesta zona de fronteira entre o “mal radical” do totalitarismo (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, 1990) e o humano, demasiado humano dos pracinhas brasileiros: “Minha ambição, quando fui escolhido para correspondente de guerra do Diário Carioca, era fazer uma história da campanha. Está visto que eu não pretendia fazer uma história que interessasse aos técnicos militares, mas uma narrativa popular, honesta e simples, da vida e dos feitos de nossos homens na Itália. Uma espécie de cronicão da FEB, à boa moda portuguesa antiga” (Com a FEB na Itália, 1945).

Três

O tal “cronicão” exigirá de Braga a traição elegante tanto do jornalismo quanto da literatura. Por um lado, declina dos princípios da objetividade, imparcialidade e universalidade para registrar a campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália como quem escreve a história imediata vista de baixo, ou seja, pelos olhos desarmados dos pracinhas, aos quais o lápis e o papel do repórter dão voz e vez, identificando-os pelo nome, cidade de origem e outros pormenores. Ainda que redigidas sob a vigilância da censura estado-novista, as crônicas de Com a FEB na Itália não descuram das subjetividades transtornadas pela guerra, da crítica aos totalitarismos de qualquer natureza ou latitude, do redobrado interesse pelos personagens e acontecimentos mais banais e comezinhos. Por outro lado, o devaneio e o lirismo que, por vezes, atravessam estas crônicas são apenas um breve e necessário recreio para, algumas linhas adiante, reencontrar e suportar a verdade chã da guerra, selva selvaggia de morte e miséria.

Dois

Considerado “comunista” pela ditadura Vargas, um espião da liberdade nos intestinos do totalitarismo, Braga não dispunha de franquia telegráfica para o envio de suas crônicas-reportagens, as quais alcançavam o Rio de Janeiro via mala postal aérea, às vezes com lapso de tempo superior a um mês. Tal restrição lhe permitia circular sem afobação por todas as posições do campo de batalha, entabular longas conversas com todo tipo de gente, incluindo expedicionários de qualquer patente e cidadãos italianos, demorar-se na observação minuciosa da paisagem natural e humana. Ou seja, o cronista podia realizar todos os sentidos originários do verbo grego skopeýo, podia ser o espião que se propôs, armado tão somente de imaginação lírica e fúria jornalística.

Um

Este texto foi apenas uma contagem regressiva. Cumpre a você, leitor, acionar a máquina que José Geraldo Batista engenhou sem qualquer preguiça nas páginas que seguem.

Zero

Juiz de Fora, junho de 2014.

 

Post scriptum:

Rubem Braga com a FEB na Itália: crônicas-reportagens, literatura da notícia, de José Geraldo Batista, pode ser adquirido no site da Editora Prismas: http://editoraprismas.com/loja/product_info.php?products_id=334&osCsid=cb48320d3473ec19b70a858ef21d4998.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CHERUBINO AL DI LÀ DEL TEMPO PREDATORE: MEMÓRIAS DE AMOR E AMIZADE NA LÍRICA DE ANNALISA CIMA

Leia as micronarrativas
nas postagens abaixo.


Por onde começar a publicação da obra de uma poeta italiana que, inaugurada em 1969, permaneceria inédita no Brasil até 2002? No sentido cronológico, do livro de estréia à produção mais recente, de modo a oferecer ao leitor as diversas estações da viagem lírica empreendida? Ou acolhendo um percurso à rebours, conforme a prática editorial adotada em antologias e reuniões poéticas? Como seduzir uma editora para tal empreitada, quando em geral o mercado se mostra tão avesso à poesia? De que modo apresentar uma obra já extensa através de um único título, sem com isso incorrer nos riscos próprios a qualquer procedimento metonímico?
Tais questões nos assaltam diante da publicação de Hipóteses de amor (Ipotesi d’amore), de Annalisa Cima, pela Ateliê Editorial. E talvez tenham mesmo assaltado Maria Eugenia Boaventura e Ivo Barroso, organizadores do livro que, publicado na Itália em 1984, mereceu uma bela e cuidada edição brasileira, à altura da obra da poeta milanesa e da tradução iniciada por Alexandre Eulalio (1932-1988) em 1985 e completada por Ivo Barroso. Tal como os 36 poemas do volume, escritos sob o signo do amor e da amizade, também esta edição bilíngue parece-nos ter como motor estes mesmos sentimentos, pois trata-se de uma ação entre amigos, no sentido mais belo, nobre e amorável que se possa encontrar para a expressão.
Não nos cumpre falar da amizade de Annalisa Cima e Alexandre Eulalio ou da homenagem que Maria Eugenia Boaventura e Ivo Barroso prestam àquele crítico, tradutor e poeta, completando a sua obra interrompida. Hipóteses de amor nos diz já na sua estrutura dos modos plurais que Eros empregou para presentificar-se e engendrar o volume. Desde o prefácio até as fotos e cartas de Eulalio a Cima que emolduram a obra, passando pelo posfácio escrito pela poeta especialmente para a edição brasileira – e que se encerra com um poema dedicado ao amigo e tradutor –, a escritura mesma dos textos exigia a forma física que o livro soube encontrar.
E saberá encontrar também o leitor a forma de se aproximar da obra de Annalisa Cima através de Hipóteses de amor, bastando recorrer aos poemas da primeira parte para a lição acerca dos modos deste avizinhar-se. Sob o título “A Cherubino”, os doze textos iniciais são, conforme as palavras da própria autora no posfácio, “um solilóquio do poeta, solilóquio que tende a identificar a miragem, o sortilégio do amor por si mesmo e pelo outro, numa duplicidade que é espelhamento” (“Posfácio”).

Capas das edições italiana e brasileira.

Figurações de Eros

Os sentidos paradoxais, ambíguos e incertos do personagem-signo Cherubino se desvelam como as muitas figurações de Eros que, nos interstícios do texto poético de Annalisa Cima, insinuam-se como memória do desejo carnal e dos diálogos intelectuais, como o amor que ousa dizer os seus múltiplos nomes, as suas numerosas hipóteses. Assim, através do arranjo entre o karibu babilônico, o kerub da tradição hebraica e o Cherubino mozartiano, Eros exsurge para domar il tempo predatore (título de uma outra recolha da poeta, 1997) e textualizar a memória dos encontros da autora com o amor-Marte e a amizade-Vênus.
Tudo principia pelo que promete a aproximação alada no poema 1. da seção “A Cherubino”:

Talvez analogias naturais
dançam alegria
talvez descorado tédio
do engano
vão
hipóteses de amor.

Talvez bastasse
uma lâmina
para trinchar pensares
futilidade, e dar-nos
em fundível encontro
compacteza
temperatura
gana.

As sortes da guerra
são incertas.
Vencerei: Vênus
a mim dá reinos
que Marte doa a outros.

Ao modo de prólogo e índice remissivo, o texto inaugural da obra tanto anuncia o avizinhar-se do puer alatus, a miragem deste ser encantador, quanto antecipa o jogo de Eros, em suas muitas partidas desdobrado nos textos posteriores. Neste sentido, os versos iniciais referem as várias e dúbias gêneses do deus grego, incluindo as “analogias naturais” que o fazem figurar entre os quatro elementos primevos da cosmogonia helênica, juntamente com Caos, Terra e Tártaro (cf. Hesíodo, Teogonia, v. 116-122), ou que atribuem o seu nascimento a um “ovo sem germe” produzido pela Noite (cf. Aristófanes, Os pássaros, v. 693 ss.). Tais referências não descuram da participação de Eros, em parelha com Desejo (Hímeros), no séquito de Afrodite (a Vênus romana), deusa com a qual partilha, além da beleza, outras das dádivas que, ainda segundo Hesíodo, lhe couberam “entre homens e Deuses imortais”: “as conversas de moças, os sorrisos, os enganos, o doce gozo, o amor e a meiguice” (Teogonia, v. 204-206).
E prosseguem as alusões às variantes do mito de Eros, desde o episódio da lança por ele utilizada para despertar Psiquê – “Talvez bastasse / uma lâmina / para trinchar pensares” – até o “descorado tédio” que o lógos da metafísica de Platão lhe empresta ao inaugurar a oposição entre o “amor natural” e o “amor intelectual”, com privilégio deste último. Tédio este que a filosofia cristã tratou de acentuar através do repúdio a Eros como amor concupiscientiae ou vulgaris e da eleição da caritas como sinonímia do amor divinus, até a quase completa domesticação daquela criança nua, zombeteira, patética e perigosa pelo pequeno e insosso deus Amor da cristandade.
Não por acaso, as referências avançam no sentido de surpreender e acionar o Eros adormecido, domado ou dissimulado nas brechas da tradição artístico-literária do Ocidente. De forma que os atributos do deus – abrupto, alegre, dúbio, fútil, lascivo, perigoso, bélico etc. – encontram fons et origo também (e dentre outros) em Dante Alighieri – “... quando m’apparve Amor subitamente, / cui essenza membrar mi dà orrore. // Allegro mi sembrava Amor tenendo / meo core in mano” (Vita nuova, III, v. 11-12); em Torquato Tasso – “Amore, in qual scola, / da qual mastro s’apprende / la tua sì lunga e dubbia arte d’amare?” (Aminta, ato II, cena III); “... ma il suo scherzar è pieno / di periglio e di danno. [...] Facilmente s’adira / facilmente si placa; e nel suo viso / vedi quasi in un punto / e le lagrime e ’l riso” (Idem, epílogo); em Pierre de Ronsard – “Amour et Mars sont presque d’une sorte: L’un en plein jour, l’autre combat de nuit” (Les amours de Cassandre, soneto CLXXX); e no libreto de Lorenzo da Ponte para Le nozze di Figaroopera buffa de Wolfgand Amadeus Mozart – “Non so più cosa son, cosa faccio, / or di foco, ora sono di ghiaccio” (Le nozze di Figaro, cena V, ária de Cherubino).
Serão estas referências, predicados e imagens desdobradas nos demais textos da seção “A Cherubino” como simulação de uma narrativa – sempre breve, lacunar e avessa a qualquer cronologia – dos embates com Eros kallistos. Assim, já no poema 2, ecoa a voz tomista e aristotélica de Dante – “Amante amado amando-te” –, enquanto no 3 súbito irrompe Cherubino – “Com boca de menino” –, então confundido com Aminta, personagem enamorado da citada favola pastorale de Torquato Tasso, para rubricar o “amor pien di gioia e di salute” (Aminta, ato I, cena I). Contrapondo-se ao débil Amor cristão, o Cherubino com que monologa Annalisa Cima tem por epíteto “remédio ao tédio” (poema 6), destinado que está às “horas do proibido” e às funções guerreiras de Marte, metaforicamente assinaladas no poema 7 com uma citação em latim da comédia A corda, de Plauto: “rem acu tetigisti” (“tocar a coisa com a agulha”).         
O que “começou como jogo” (poema 4) exigirá o empenho de todo o corpo, com suas alegrias e dores. Corpo que se nomeia em boca, pupila, dentes, mão, costas. E nomeando-se, mais se dá do que se recusa: “tenho lágrimas nos olhos / e sal no meu palato” (poema 2); “imprevisto chamado / de olhos que me fazem / empalidecer” (poema 4); “Movo os passos / para sutis reencontros” (poema 9). Porque se trata do corpo erótico, cujos atributos foram antes anunciados no poema 1: “compacteza / temperatura / gana”. De forma que este corpo que apela a Cherubino para o “fundível encontro” (poema 1) – ersatz da hierogamia originária engendrada pela potência unificadora de Eros – desvela a força elementar que domina e reúne amante e amada, como demonstram os excertos dos poemas 2, 4 e 8 que, respectivamente, transcrevemos:

mas não há hiato entre nós
que somos
calor calado no viver deixando
e quando te olho
vejo que és o sol

......................................................

Ao alado peço
que não feche o jogo
conheço os antigos sinais de fogo

......................................................

Agora o indefeso pensar
tem o sofrido da febre

Inflamados pelo fogo de Eros, os corpos se entregam às “sortes da guerra” (poema 1) – “Há sempre estações de pranto / e estações em que o canto dos dias / muda o passado congelado” (poema 2) –, pois o jogo de ousadias de Cherubino acaba por vencer a palidez e as resistências da amada: “suave depor o rigor / a tempo e hora” (poema 4). Não sem feridas, amarguras, febres, lonjuras, sinais de ameaça e abandonos, os amantes elaboram as “mesuras do dar, do querer (poema 8)”, encontrando juntos o devir que apenas os corpos amorosos realizam:

Chegaste
e a tua mão desperta motivos
dançando sobre declives divinos.
Gemes, e as paredes
ouvem o teu ardor.
Lisa, alissa, leve
ut, fenice, vale
reténs nunca e ainda,
pelas costas o cavaleiro
senta e devora.
(poema 12)

Visite o site de Annalisa Cima, http://annalisacima.com/homepage.htm.

Da amizade-Vênus

Enquanto a primeira seção de Hipóteses de amor nos apresenta as várias figurações de Eros, travestido num Cherubino que é o arranjo das muitas e dúbias manifestações daquele deus com os atributos do híbrido karibu babilônico (metade homem, metade animal) e do sedutor Cherubino mozartiano, os poemas reunidos sob o título “A outros” acrescenta a este personagem os caracteres do angélico kerub da tradição hebraica, símbolo da efusão de sabedoria. Pois, embora não seja menos caloroso o sol erótico que ilumina os familiares e amigos homenageados nesta segunda e última seção, é diversa a medida e o vigor amorosos desses diálogos que, ainda quando realizados post mortem, buscam “o desconhecido momento, de juntos reencontrarmos o tempo” (“A vovô Francesco”), “o emblema de um mudo lembrar-te” (“A S.”), de modo a fazer durar na memória os saberes destes outros querubins.
Nos poemas que dedica a Jorge Guillén, Eugenio Montale, Marianne Moore, Pier Paolo Pasolini, Ezra Pound, Giuseppe Ungaretti e Luchino Visconti, apenas para citar os mais conhecidos entre nós, Annalisa Cima deslinda o que permanece do alegre aprendizado humano e lírico com os “componentes de uma família utópica” (“Posfácio”). Nas palavras da autora, o fulcro destes textos “é a amizade como momento privilegiado: sentimento que redime o mundo de suas torpezas” (Idem), na medida em que nos permite vencer “a moribunda / presença do tempo” (“A Franco Fortini”) e conciliar “desejo e distância” (“A Marianne Moore”). De forma que a amizade-Vênus ensina e concede à palavra poética “o ouvir as nossas rimas / votadas ao não findar” (“A Giuseppe Ungaretti”). Mudar o outro em texto, dizer os amigos e traduzir suas lições é o mesmo que olhá-los “sem tempo nem lugar” (“A Luigi Fenga”). Trata-se de vencer os avanços da morte através da alegria de louvar com palavras amorosas, tal exemplifica o poema “A Cesare Segre”:

Alegria de louvar
o louvado amigo
que da linguagem
regula o pensar.

[...]

Urge continuar lado a lado
a palavra
porque nosso amor
nossa pátria.

Quando e apenas sob o signo de Eros, a palavra é penhor do encontro, seja ele amor ou amizade, seja com Vênus ou Marte, seja no tempo ou na eternidade.
  
CIMA, Annalisa. Hipóteses de amor. Trad. Alexandre Eulálio e Ivo Barroso. São Paulo: Ateliê, 2002.


sexta-feira, 17 de abril de 2015

FACE AO QUE NUNCA SE DEITA


[Leia as micronarrativas de
Breviário 
nas postagens abaixo.]

Prefácio do livro Corpo arquivode Paulo Andrade
(São Paulo: Patuá, 2014)

Fernando Fiorese

Le corps touche à tout du bout secret de ses doigts osseux.
E tout finit par faire corps...
(O corpo toca tudo com a ponta secreta de seus dedos ossudos.
E tudo acaba por fazer corpo ...)
Jean-Luc Nancy

Mesmo ao prefaciador, em geral, o poeta não dá a conhecer o desalinho caótico ou a ordem cirúrgica de sua oficina, mantendo sob grossos tapumes o canteiro acidentado ou bem medido da obra e seus processos. E quando alcança as mãos do leitor, o livro já não dispõe do sujo e das aparas que ficam dos versos, ainda quando se possa adivinhar neles os caminhos do serrote, os golpes do martelo e um ou outro prego embutidos. Seja por pudor ou truque de elegância, técnica de higiene ou soberba, o escondimento dos andares e desandares da criação é um dos muitos demônios que assombram o ofício lírico, uma obsessão por vezes mudada em ars poetica, tal a lição de Olavo Bilac em “A um poeta”:

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

Outras vezes, para ficar em dois casos apenas, esta mesma neurose se torna questão, através da qual algo dos intestinos da empresa criadora é desvelado, ainda que, como nestas duas estrofes do poeta-crítico João Cabral de Melo Neto, a partir de uma “Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar”:

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar.

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

[...]

Além das delícias da digressão – esse demônio menor que confere certo sabor à escrita da prosa crítica –, as considerações precedentes se justificam pela circunstância rara do prefaciador ter conhecido uma das versões anteriores deste Corpo arquivo, de Paulo Andrade, versão sob outro título e para sempre esconsa e perdida, exceto, talvez, para algum pertinaz e afortunado especialista em crítica genética. Pois não pretendo cometer a indelicadeza de segredar qualquer tique ou gesto falho que tenha surpreendido entre os dois estados da obra. Muito menos me ocorreria a indiscrição de apontar as marcas dos andaimes e outros artifícios que sustentaram e moveram a reescrita, realizada sempre com a estranha alegria e o extremo cuidado de quem constrói para a habitação do outro, com a angústia e a urgência absurda de quem sabe que o fim da obra é também uma morte.  
Ajuntado à leitura do primeiro livro do autor – Inventários (2002), do qual poemas migraram para este volume – e a algumas poucas palavras do próprio poeta acerca dos bastidores do processo de reescrita, tal acidente se oferece como incipit e motor para a abordagem sucinta da poética de Paulo Andrade. Grosso modo, trata-se de uma poética que se quer e se faz o que a obra é, ou seja, uma construção em perpetuum mobile, nunca acabada e de nenhum modo pessoal e intransferível, pois urdida pelas vozes de vários e pelo plural das circunstâncias. Em contraposição ao que sugerimos nos parágrafos de abertura, ao menos em parte e desde o título, epígrafes escolhidas e a “Advertência” do autor, o corpus deste livro não faz segredo absoluto da matéria e dos artifícios que se desdobram na costura de suas seis seções, a saber: “Arquivo do corpo”, “Corpos dramáticos”, “Corpos etéreos”, “Corpos ex/cêntricos”, “Câmera escura” e “Venenos mínimos”.
Desculpando-me com o poeta por esta única indiscrição, devo revelar que, na primeira versão que me foi enviada, o livro se intitulava Corpo, linguagem. E não há nada de aleatório, gratuito ou mero capricho na mudança para Corpo arquivo, ainda que com a manutenção do título inicial num dos poemas. A priori, tanto a supressão da vírgula, na medida em que transtorna a relação sintática entre os vocábulos e embaralha a semântica dos mesmos, quanto a substituição de linguagem por arquivo, correspondendo a um “rebaixamento” do conceitual para o material, rubricam o empenho de Paulo Andrade no sentido de colocar a nu os andaimes da obra, ou seja, as questões que o mobilizam e o colocam à altura do diálogo com a matéria bruta do seu tempo. Tais questões, desveladas em parte pelos títulos das seções e pelas epígrafes de Armando Freitas Filho, Salgado Maranhão e Murilo Mendes, encontram-se condensadas por inteiro no título, como fora este um minúsculo cosmos a ser expandido conforme o pulsar dos poemas.

O autor...

Para ser breve como exige um prefácio digno deste nome, diria que a linha de força que aciona e alinhava o repertório das questões desdobradas ao longo deste livro refere-se à dualidade entre physis e logos, que encontra no corpo o locus incommōdus no qual se dão suas cismas, seus cilícios, suas cifras, seus crimes. Tão originária e primeva quanto contemporânea, tal dualidade exsurge em tradução livre já no título da obra – corpo = physis; arquivo = logos –, enquanto os poemas surpreendem algumas das muitas figurações da crise do corpo, a começar pelas tantas perplexidades diante de seus “acordes dissonantes”, de “seu ritmo assimétrico, suas harmonias / politonais” (“A sagração da primavera”). Nada disciplina a physis, o “corpo em constante devir”, porque “é da natureza da natureza ser / incivilizada, subversiva”, porque sempre “esperando / o abraço do imponderável” (Idem). Carne que “ainda persiste em ser atlas” (“Arquivo”) [1], a physis resiste às forças legislativas do logos – “Circuitos entram em curto / e uma guerra se instaura” (Idem) –, e nesta resistência toma corpo o poema, arquivo-logos transtornado pelo corpo próprio e pelas “linhas e dobras” (“Corpo, linguagem”) do corpo do outro. Assim, no desandar de suas andanças, as metáforas [2] e outras textualizações do corpo são a prova cabal dos modos como a physis desvia de ser apenas uma “prosaica / coleção de inventários” (“Arquivo”), fazendo do poema o seu campo de batalha – não para aniquilar o logos, mas para estar à altura deste outro, de sua diferença, à altura do devir que somos, à altura do pólemos desvelado por Heráclito: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor...” (fr. 53).
Igual embate entre o corpo selvagem e o corpo civilizado encontramos nos poemas “Corpo, linguagem”, “Canto de sereia” e “Entreato”. Afinal, enquanto ars erotica, o “amor natural” é também repto entre corpos, arquivo de energias vitais e de petites morts, questão em aberto, irrespondível:

enredados no tempo
vivemos sem compreender
se estamos aqui para
entender ou para viver
(“Entreato”).

E ainda que prevaleça a lição da “Arte de amar”, de Manuel Bandeira – “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. // Porque os corpos se entendem, mas as almas não” –, a problemática do corpo não arrefece. Ao contrário, o tempo lhe acrescenta mais e mais clausuras e horizontes, higienes e pecados, naturas e artifícios, monstros e ideais. A ponto de encarnar as palavras de Walter Benjamin – “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” –, de mudar o ideal em monstruosidade, como nas práticas contemporâneas do “Fitness”:

Por isso corre para expulsar-se
para expulsá-lo de si aquele corpo
(que não lhe pertence?) ele não sabe
Mas ela odeia suas carências e subversões

Obteve sucesso em seu plano de fuga
hoje habita um outro desconhecido corpo

Contra a desaparição do corpo na cena contemporânea pela ascese (bulimia, anorexia, obesidade) ou pela assepsia (maquilagem, cirurgia estética, próteses) de seus abismos, tormentas, tensões, vácuos e enigmas, o poeta investe na multiplicação de corpos. De um lado, a “escritura inscrita / entre a vida e a morte” (“O polvo e seus tentáculos”) empresta corpo a um plural de dramatis personae de poetas e artistas plásticos (Torquato Neto, Lautréamont, Cabelo, Jack Johnson e William Turner); de outro, nos “corpos etéreos” – porque plásticos, fluidos, alheios, metamórficos – de gatos, beija-flores, abelhas e caranguejos, experimenta-se a mais radical alteridade, o devir animal. Ao inumano acrescenta-se também o desumano dos “Corpos ex/cêntricos”, marginais e marginalizados, proliferando invisíveis na vertigem famélica e artificiosa das metrópoles (“Sem-abrigo”, “Moto-boy” e “Natureza morta”). Na carne e no fluxo da linguagem, Paulo Andrade desarquiva uma demasia de corpos – estranhos, belos, eróticos, tóxicos, chagados, enigmáticos – para que o corpo seja o que é, monumento de barbárie e cultura, corpus corporum. Porque corpo só existe no plural, no contágio, na acoplagem.

... e a obra

E deste corpo a corpo com o exterior e com o outro exsurge a diferença do corpo próprio do poeta, a “Câmera escura” e singular da memória, da biografia. De “Genealogia da asma” ao poema em prosa “Por isso não se confunde...”, abre-se o arquivo da infância agreste e sem mitos. Poucos autores terão apresentado um retrato tão cru e cruel da infância, bordada de muitas mortes, faltas, acidentes, asfixias, dores, negativas e assombramentos:

Nem sempre a realidade
é uma ilusão de ótica
nem a escrita converte
em matéria o ato imodificável
o selvagem da imagem que
sobrevive oculto entre ruínas
e escombros.

Não há escavação arqueológica
que remova tais vestígios.
Há rebeliões no sótão que irrompem
à revelia os arquivos ressoando
assombramentos na câmera escura.
(“Assombramentos”)
  
Na memória dos desalinhos da linhagem e dos paradoxos e paroxismos da criança, o poeta rubrica a diferença do corpo de si mesmo. Daí que o corpo do adulto (em trânsito) possa olhar e dizer o corpo do infans (imóvel e mudo): “naquela varanda onde crianças / brincam com o barro estou // os pés fincados” (“Caderno de viagem”). Corpos de prova, corpos em prova, errantes e atentos aos incêndios da poesia, à circulação dos “Venenos mínimos”, à “Errata” que se impõe:

são dois corpos mirando
não entre si
mas o ponto que converge
no futuro

Os corpos do eu e do outro, do menino e do homem, de Paulo Andrade e de Sebastião Uchoa Leite – tantos corpos e a mesma questão:

o que fazer com tantos
lapsos, atos falhos,
esquecimentos
equívocos
(“Para Sebastião Uchoa Leite”)                             

Porque são eles, esses tantos corpos, disjecta membra sob as trevas do nosso tempo. E embora o excesso de luzes ameace recalcar a physis em pura imagem, não se arreda a questão originária do logos heraclítico – “Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?” (fr. 16). Não por acaso, nas forças de fratura e nas linhas de sutura dos textos de Paulo Andrade ecoam as palavras de Giorgio Agamben: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra”. Trata-se de manter a descoberto a tensão indecidível entre physis e logos para que nunca se deite o corpo do texto, do tempo e do ser.

Juiz de Fora, 20 de abril de 2014.

Notas

[1] Mesmo a inicial minúscula não permite esquecer o titã grego, representação mítica das forças do caos e da desordem submetidas e disciplinadas por Zeus, conforme a Teogonia, de Hesíodo: “Atlas, sustém o amplo céu sob cruel coerção / nos confins da Terra ante as Hespérides cantoras, / de pé, com a cabeça e infatigáveis braços: / este destino o sábio Zeus atribuiu-lhe” (v. 517-520).
[2] Do grego, metá (= “no meio de, entre; atrás, em seguida, depois; com, de acordo com, segundo; durante”) + phérō (= “levar, carregar, transportar, trazer; suportar, encontrar; resistir; arrebatar”).

Post scriptum:
Corpo arquivo, de Paulo Andrade, pode ser adquirido no site da Editora Patuá: