Prefácio do livro Corpo arquivo, de Paulo Andrade
(São Paulo: Patuá, 2014)
Fernando Fiorese
Le
corps touche à tout du bout secret de ses doigts osseux.
E
tout finit par faire corps...
(O corpo toca tudo com a ponta
secreta de seus dedos ossudos.
E tudo acaba por fazer corpo ...)
Jean-Luc Nancy
Mesmo ao
prefaciador, em geral, o poeta não dá a conhecer o desalinho caótico ou a ordem
cirúrgica de sua oficina, mantendo sob grossos tapumes o canteiro acidentado ou
bem medido da obra e seus processos. E quando alcança as mãos do leitor, o
livro já não dispõe do sujo e das aparas que ficam dos versos, ainda quando se
possa adivinhar neles os caminhos do serrote, os golpes do martelo e um ou
outro prego embutidos. Seja por pudor ou truque de elegância, técnica de higiene
ou soberba, o escondimento dos andares e desandares da criação é um dos muitos
demônios que assombram o ofício lírico, uma obsessão por vezes mudada em ars
poetica, tal a lição de Olavo Bilac em “A um poeta”:
Longe do
estéril turbilhão da rua,
Beneditino,
escreve! No aconchego
Do
claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha,
e teima, e lima, e sofre, e sua!
Mas que na
forma se disfarce o emprego
Do
esforço; e a trama viva se construa
De tal
modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas
sóbria, como um templo grego.
Não se
mostre na fábrica o suplício
Do mestre.
E, natural, o efeito agrade,
Sem
lembrar os andaimes do edifício:
Porque a
Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura,
inimiga do artifício,
É a força
e a graça na simplicidade.
Outras vezes, para
ficar em dois casos apenas, esta mesma neurose se torna questão, através da
qual algo dos intestinos da empresa criadora é desvelado, ainda que, como nestas
duas estrofes do poeta-crítico João Cabral de Melo Neto, a partir de uma “Exceção:
Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar”:
Por que é
o mesmo o pudor
de
escrever e defecar?
Não há o
pudor de comer,
de beber,
de incorporar,
e em geral
tem mais pudor
quem pede
do que quem dá.
Então por
que quem escreve,
se escrever
é afinal dar,
evita
gente por perto
e procura
se isolar.
Escrever é
estar no extremo
de si
mesmo, e quem está
assim se
exercendo nessa
nudez, a
mais nua que há,
tem pudor
de que outros vejam
o que deve
haver de esgar,
de tiques,
de gestos falhos,
de pouco
espetacular
na torta
visão de uma alma
no pleno
estertor de criar.
[...]
Além das
delícias da digressão – esse demônio menor que confere certo sabor à escrita da
prosa crítica –, as considerações precedentes se justificam pela circunstância
rara do prefaciador ter conhecido uma das versões anteriores deste Corpo
arquivo, de Paulo Andrade, versão sob outro título e para sempre esconsa e perdida,
exceto, talvez, para algum pertinaz e afortunado especialista em crítica
genética. Pois não pretendo cometer a indelicadeza de segredar qualquer tique
ou gesto falho que tenha surpreendido entre os dois estados da obra. Muito
menos me ocorreria a indiscrição de apontar as marcas dos andaimes e outros
artifícios que sustentaram e moveram a reescrita, realizada sempre com a
estranha alegria e o extremo cuidado de quem constrói para a habitação do
outro, com a angústia e a urgência absurda de quem sabe que o fim da obra é
também uma morte.
Ajuntado à
leitura do primeiro livro do autor – Inventários (2002), do qual poemas
migraram para este volume – e a algumas poucas palavras do próprio poeta acerca
dos bastidores do processo de reescrita, tal acidente se oferece como incipit
e motor para a abordagem sucinta da poética de Paulo Andrade. Grosso modo,
trata-se de uma poética que se quer e se faz o que a obra é, ou seja, uma
construção em perpetuum mobile, nunca acabada e de nenhum modo pessoal e
intransferível, pois urdida pelas vozes de vários e pelo plural das
circunstâncias. Em contraposição ao que sugerimos nos parágrafos de abertura,
ao menos em parte e desde o título, epígrafes escolhidas e a “Advertência” do
autor, o corpus deste livro não faz segredo absoluto da matéria e dos
artifícios que se desdobram na costura de suas seis seções, a saber: “Arquivo
do corpo”, “Corpos dramáticos”, “Corpos etéreos”, “Corpos ex/cêntricos”,
“Câmera escura” e “Venenos mínimos”.
Desculpando-me com o
poeta por esta única indiscrição, devo revelar que, na primeira versão que me
foi enviada, o livro se intitulava Corpo, linguagem. E não há nada de
aleatório, gratuito ou mero capricho na mudança para Corpo arquivo,
ainda que com a manutenção do título inicial num dos poemas. A priori, tanto
a supressão da vírgula, na medida em que transtorna a relação sintática entre
os vocábulos e embaralha a semântica dos mesmos, quanto a substituição de linguagem por arquivo, correspondendo a um “rebaixamento” do conceitual para o
material, rubricam o empenho de Paulo Andrade no sentido de colocar a nu os
andaimes da obra, ou seja, as questões que o mobilizam e o colocam à altura do
diálogo com a matéria bruta do seu tempo. Tais questões, desveladas em parte
pelos títulos das seções e pelas epígrafes de Armando Freitas Filho, Salgado
Maranhão e Murilo Mendes, encontram-se condensadas por inteiro no título, como
fora este um minúsculo cosmos a ser expandido conforme o pulsar dos poemas.
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O autor... |
Para ser
breve como exige um prefácio digno deste nome, diria que a linha de força que aciona
e alinhava o repertório das questões desdobradas ao longo deste livro refere-se
à dualidade entre physis e logos, que encontra no corpo o locus incommōdus no qual se dão suas cismas, seus
cilícios, suas cifras, seus crimes. Tão originária e primeva quanto
contemporânea, tal dualidade exsurge em tradução livre já no título da obra –
corpo = physis; arquivo = logos –, enquanto os poemas surpreendem
algumas das muitas figurações da crise do corpo, a começar pelas tantas perplexidades
diante de seus “acordes dissonantes”, de “seu ritmo assimétrico, suas harmonias
/ politonais” (“A sagração da primavera”). Nada disciplina a physis, o
“corpo em constante devir”, porque “é da natureza da natureza ser /
incivilizada, subversiva”, porque sempre “esperando / o abraço do imponderável”
(Idem). Carne que “ainda persiste em ser atlas” (“Arquivo”) [1], a physis
resiste às forças legislativas do logos – “Circuitos entram em curto / e
uma guerra se instaura” (Idem) –, e nesta resistência toma corpo o
poema, arquivo-logos transtornado pelo corpo próprio e pelas “linhas e
dobras” (“Corpo, linguagem”) do corpo do outro. Assim, no desandar de suas
andanças, as metáforas [2] e outras textualizações do corpo são a prova cabal dos
modos como a physis desvia de ser apenas uma “prosaica / coleção de
inventários” (“Arquivo”), fazendo do poema o seu campo de batalha – não para
aniquilar o logos, mas para estar à altura deste outro, de sua
diferença, à altura do devir que somos, à altura do pólemos desvelado
por Heráclito: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor...” (fr. 53).
Igual
embate entre o corpo selvagem e o corpo civilizado encontramos nos poemas
“Corpo, linguagem”, “Canto de sereia” e “Entreato”. Afinal, enquanto ars
erotica, o “amor natural” é também repto entre corpos, arquivo de energias
vitais e de petites morts, questão em aberto, irrespondível:
enredados
no tempo
vivemos
sem compreender
se estamos
aqui para
entender
ou para viver
(“Entreato”).
E ainda que prevaleça
a lição da “Arte de amar”, de Manuel Bandeira – “Deixa o teu corpo entender-se
com outro corpo. // Porque os corpos se entendem, mas as almas não” –, a
problemática do corpo não arrefece. Ao contrário, o tempo lhe acrescenta mais e
mais clausuras e horizontes, higienes e pecados, naturas e artifícios, monstros
e ideais. A ponto de encarnar as palavras de Walter Benjamin – “Nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” –, de mudar
o ideal em monstruosidade, como nas práticas contemporâneas do “Fitness”:
Por isso
corre para expulsar-se
para
expulsá-lo de si aquele corpo
(que não
lhe pertence?) ele não sabe
Mas ela
odeia suas carências e subversões
Obteve
sucesso em seu plano de fuga
hoje
habita um outro desconhecido corpo
Contra a
desaparição do corpo na cena contemporânea pela ascese (bulimia, anorexia,
obesidade) ou pela assepsia (maquilagem, cirurgia estética, próteses) de seus
abismos, tormentas, tensões, vácuos e enigmas, o poeta investe na multiplicação
de corpos. De um lado, a “escritura inscrita / entre a vida e a morte” (“O
polvo e seus tentáculos”) empresta corpo a um plural de dramatis personae
de poetas e artistas plásticos (Torquato Neto, Lautréamont, Cabelo, Jack
Johnson e William Turner); de outro, nos “corpos etéreos” – porque plásticos,
fluidos, alheios, metamórficos – de gatos, beija-flores, abelhas e caranguejos,
experimenta-se a mais radical alteridade, o devir animal. Ao inumano
acrescenta-se também o desumano dos “Corpos ex/cêntricos”, marginais e
marginalizados, proliferando invisíveis na vertigem famélica e artificiosa das
metrópoles (“Sem-abrigo”, “Moto-boy” e “Natureza morta”). Na carne e no fluxo da
linguagem, Paulo Andrade desarquiva uma demasia de corpos – estranhos, belos, eróticos,
tóxicos, chagados, enigmáticos – para que o corpo seja o que é, monumento de
barbárie e cultura, corpus corporum. Porque corpo só existe no plural,
no contágio, na acoplagem.
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... e a obra |
E deste
corpo a corpo com o exterior e com o outro exsurge a diferença do corpo próprio
do poeta, a “Câmera escura” e singular da memória, da biografia. De “Genealogia
da asma” ao poema em prosa “Por isso não se confunde...”, abre-se o arquivo da infância
agreste e sem mitos. Poucos autores terão apresentado um retrato tão cru e
cruel da infância, bordada de muitas mortes, faltas, acidentes, asfixias, dores,
negativas e assombramentos:
Nem sempre
a realidade
é uma
ilusão de ótica
nem a
escrita converte
em matéria
o ato imodificável
o selvagem
da imagem que
sobrevive
oculto entre ruínas
e
escombros.
Não há
escavação arqueológica
que remova
tais vestígios.
Há
rebeliões no sótão que irrompem
à revelia
os arquivos ressoando
assombramentos
na câmera escura.
(“Assombramentos”)
Na memória
dos desalinhos da linhagem e dos paradoxos e paroxismos da criança, o poeta
rubrica a diferença do corpo de si mesmo. Daí que o corpo do adulto (em
trânsito) possa olhar e dizer o corpo do infans (imóvel e mudo):
“naquela varanda onde crianças / brincam com o barro estou // os pés fincados”
(“Caderno de viagem”). Corpos de prova, corpos em prova, errantes e atentos aos
incêndios da poesia, à circulação dos “Venenos mínimos”, à “Errata” que se
impõe:
são dois
corpos mirando
não entre
si
mas o
ponto que converge
no futuro
Os corpos do
eu e do outro, do menino e do homem, de Paulo Andrade e de Sebastião Uchoa
Leite – tantos corpos e a mesma questão:
o que
fazer com tantos
lapsos,
atos falhos,
esquecimentos
equívocos
(“Para
Sebastião Uchoa Leite”)
Porque são eles, esses
tantos corpos, disjecta membra sob as trevas do nosso tempo. E embora o
excesso de luzes ameace recalcar a physis em pura imagem, não se arreda
a questão originária do logos heraclítico – “Como alguém poderia
manter-se encoberto face ao que nunca se deita?” (fr. 16). Não por acaso, nas
forças de fratura e nas linhas de sutura dos textos de Paulo Andrade ecoam as
palavras de Giorgio Agamben: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura,
é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve
suturar a quebra”. Trata-se de manter a descoberto a tensão indecidível entre physis
e logos para que nunca se deite o corpo do texto, do tempo e do ser.
Juiz de Fora, 20 de
abril de 2014.
Notas
[1] Mesmo a inicial minúscula não permite esquecer o titã
grego, representação mítica das forças do caos e da desordem submetidas e
disciplinadas por Zeus, conforme a Teogonia,
de Hesíodo: “Atlas, sustém o amplo céu sob cruel coerção / nos confins da Terra
ante as Hespérides cantoras, / de pé, com a cabeça e infatigáveis braços: /
este destino o sábio Zeus atribuiu-lhe” (v. 517-520).
[2] Do grego, metá
(= “no meio de, entre; atrás, em seguida, depois; com, de acordo com, segundo;
durante”) + phérō (= “levar,
carregar, transportar, trazer; suportar, encontrar; resistir; arrebatar”).
Post scriptum:
Corpo arquivo, de Paulo Andrade, pode
ser adquirido no site da Editora
Patuá: