quarta-feira, 18 de novembro de 2015

MORRER EM BELEZA: A ARTE DE AMAR DE MARIA DIVA BOECHAT


Prefácio do livro Sobre amor e ervilhas,
de Maria Diva Boechat
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)

Fernando Fiorese

Amore, in qual scola,
da qual mastro s’apprende
la tua sì lunga e dubbia arte d’amare?
Torquato Tasso,
Aminta, ato II, cena III

Tudo está dito. No Ocidente, ainda que, vez ou outra, uma Musa “inédita” possa surpreender a poesia [1], parece-me que os mitos das sociedades tradicionais (incluindo o repertório imensurável das narrativas bíblicas), as fábulas e os contos de fadas já disseram tudo. Assim, escrever talvez não seja mais do que, por um lado, a busca de entonações distintas e hodiernas para o já-dito e, por outro, a tentativa quase vã de escavar as incontáveis imagens e metáforas engendradas pelas culturas orais, as quais acabaram por se perder entre os fósseis cumulados ao longo do penoso trajeto entre a voz e a escrita.
Os poemas coligidos por Maria Diva Boechat neste Sobre amor e ervilhas fazem regressar os mitos de antanho e as narrativas infantis, não para repeti-los, mas para transtornar, acrescer, encobrir, deformar, desdizer, diminuir, desdobrar, torcer ou confundir o tantas vezes dito e redito. Trata-se de uma manobra para alcançar a diferença do aqui e agora, de uma artimanha forte e desrespeitosa – porque a poeta não é mulher de respeitos – para apropriar e deslocar a tradição conforme as figurações e necessidades do contemporâneo. Na sua matéria flexível, derivante e instável, ainda quando sob registro escrito, os mitos deixam-se moldar pelas mãos de outros tempos, pelos cuidados de outras vozes.
Não por acaso, personagens fictícias (ou quase) – Ariadne, Dalila, Dionísio, as Fúrias, Helena, Páris, Prometeu, Rapunzel, Sansão, Sêmele – se juntam sem distinção a figuras reais – Chico Buarque, Chet Baker, Lucien Freud, Gaudí, Munch – e aos amigos da autora. Não por acaso, cenários prosaicos – a casa da infância, o quarto conjugal, a oficina do escultor Brennand, as paisagens marinhas, “a cidade toda em contramão” – se fundem e confundem com lugares fabulosos – Éden, Babel, Labirinto. Porque tais personae e espaços são motor e matriz, agentes e cenários do mito maior de que trata Maria Diva Boechat “com a mais pura descrença / e desespero”, como confessa no poema “Prece”, mas também “com galhofa e galhardia” (“Trágico”).
Delicadeza e barbárie, alegria e horror, beleza e guerra, ficção e confissão. Tais são os substantivos – porque, no desejo vigoroso e diligente de seus verbos, o mito é sempre substantivo – que a poeta reúne e dispersa para operar o mito da paixão, cuja abreviatura vigorosa e vertical nos dá no poema “Amor”: “Flor- / CARNÍVORA”. E se digo paixão, ao invés de amor, é para demarcar a distância e a diferença entre Eros (amor concupiscientiae ou vulgaris) e seu desdobramento espiritual, a Caritas (ou amor divinus). Porque os avances da metafísica cristã no empenho de domesticar o Eros grego, de aplainar as vertigens do amor natural, de subjugar o corpo e suas paixões, tornando-as patologias, encontraram na poesia e no imaginário um lugar de resistência par excellence. Talvez pela ousadia humana, demasiado humana, de professar o avesso do Evangelho no presente da lírica: E a carne se faz verbo e habita entre nós... [2] Ousadia que não falta à poeta:

Nada existe além da carne:
pulsa por pernas e bundas.
Invólucro do morto –
incrédulo em compreensões.

Quando o tempo
enferruja as engrenagens,
o autômato se esgueira pelos cantos
assombrando as carnes frescas
que ainda desfilam sua glória.
(“Autômato”)

Na lírica de Maria Diva Boechat, Eros exsurge com as forças que rubricam o fruto do amor clandestino de Afrodite e Ares (Vênus e Marte para os romanos), de forma que, na flor da beleza, restará sempre a rasura maiúscula e indelével da guerra, da carnificina. Daí a incidência quase obsessiva nesses poemas do vocábulo “corpo”, secundado por signos que traduzem antes a matéria bruta do que a simbólica do mesmo: carne, olhos, boca, vísceras, pernas, sêmen, saliva, unhas, sangue, nervos, entranhas, veias, coxas, língua, ouvidos, dentes, pele, face, cabelos, pé, juntas, calcanhares, dedos, bundas. Sem olvidar outros tantos substantivos, verbos e adjetivos que o amor erótico soletra na carne, tão próximos do júbilo quanto da morte. Na medida em que propugna uma escrita do corpo, o poema “Cartas ao mar” parece desvelar a poética da autora:

Ao quebrar a garrafa:
uma carta.
Em mim, três desejos despertos:
fonemas, letras, sílabas...

Ao meu querer,
palavras escorrem,
compõem o belo e o terrível do corpo.

Diante do verbo encarnado,
o espanto:
                  fiz-me réplica.

Mas mudar o corpo em verbo não indica qualquer linha de fuga, não implica qualquer metafísica. (Aliás, aqui a “Metafísica” comparece entre a blague e o banal: “– A bolsa ou a morte! // Para resguardar minha morte / entreguei bolsa, dedos, anéis, dente de ouro...” Ou como a última das “Metas”: “Metáforas / Metamorfoses / Metafísicas”.)  Pela palavra, o corpo não se eleva nem se avilta, não se redime nem se perde – continua sendo o que é: a beleza maior e o campo de batalha onde digladiam as rapinas do tempo, as rugas da memória, os demônios da sabedoria, os dédalos do outro, as urgências do desejo, as iluminações da infância, as engrenagens do tédio, os desconcertos da linguagem, as fúrias de nossos crimes mais diários.

A obra...

O deus que assombra e peleja no corpo dos poemas deste Sobre amor e ervilhas é, decerto, o Tempo, o “Crono de curvo pensar” a que refere Hesíodo na Teogonia [3] (v. 137), atribuindo-lhe, por um lado, a gênese casual de Afrodite, deusa da beleza e do amor sensual, das Erínias (as Fúrias dos romanos) e de outros colossos divinos quando da castração do pai Urano e, por outro, a devoração dos próprios filhos (cf. Teogonia, v. 178-206/459-462). Porque “o tempo ruge e morde” (“Liberdade”). O famélico Crono não mantém “vigilância de cego, mas à espreita” (Teogonia, v. 466) continua a devorar todos nós, os mortais, desmantelando a beleza dos corpos e, quando muito, substituindo-a pela “Ingaia ciência”, este enigma aclarado por Carlos Drummond de Andrade [4]. Não são outras a revolta e a questão da poeta em “Maçã de ouro”:

Quando eu não for mais objeto de desejo
que barganhas poderei fazer?

Enquanto Helenas ensejarem guerras
o que restará a meu corpo envelhecido
além da maldição da sabedoria?

Seja do jardim das Hespérides ou de Éris, deusa da discórdia, a maçã de ouro não é coisa destinada aos mortais. A nós restam as breves eternidades, as belezas transitórias e casuais que possam ensejar um “Éden”, ainda que menor e pessoal: “Quando brotam belezas / entre a matéria esgarçada da vida, / quase perdoo a existência”. Fazer guerra contra o “Horologista” em nome da paixão e da beleza é a mais paradoxal das tarefas: “Luto pela beleza // beleza, prenúncio de luto” (“Aniquilamento”). Mas apenas na carne viva desta luta luminosa e desigual é possível arrostar a dor da ausência de beleza, assinalada nos poemas abaixo:

Memória

O que mais me dói:
no instante em que morreu,
faltava-lhe um botão na camisa.

Conjugal

O desbotar da beleza é dor física.

Contra o murchar do frescor
analgésicos fraquejam.

Ao fim do primeiro ato,
a realidade fratura conexões elaboradas.
O bifurcar dos caminhos impõe
o desmazelo das entranhas.
Doem as vísceras.

Resta o consolo do café barato.
Plasticidade, apenas às flores sobre a mesa.
    
O mesmo viés trágico da existência humana que Maria Diva Boechat empresta dos mitos greco-latinos contamina também o universo das fábulas e contos de fadas. Ainda quando telúrica e luminosa – “Do barro retornarás com o sopro da alegria” (“Meninos na chuva”) –, a memória da meninice não mitiga as dores do “desbotar da beleza” e a infância mesma não se dá como um tempo reconquistável:

Surda e sangrando
procuro a casa da infância.
Porém, o anjo deixou torto
o caminho para os vitrais coloridos.
Aguardam-me frios azulejos.
(“Liberdade”)

Não é possível renunciar
ou reaver a infância.
(“Trágico”)

Assim, as narrativas guardadas na memória e perdidas com a infância se pervertem em figuração do desejo erótico, como no caso de “A cigarra e a formiga” –

Na noite quente
a indiferença estudada
de tuas pernas
desavergonhadamente
expostas
é provação para meus nervos em flor.

A primavera chega
me descobrindo teu corpo
e a insuportável espera
por tuas pernas quedando-se exaustas
sobre as minhas.

Desdenho o inverno.
Quero rebentar de cantar
com tuas pernas cruzando
meus caminhos.

– ou ganham o peso e a gravidade que a madureza impõe à consciência:

Impossível sono.
Embora as tantas camadas de subterfúgios,
imprecisa culpa
espeta a madrugada.
(“A princesa e a ervilha”)

Embora sempre a menor, a palavra é o modo da poeta de fazer corpo para o amor, de surpreender a beleza em fuga, de afrontar o tempo predador, de não morrer de delicadeza. Afinal, Eros resiste no séquito de Afrodite e, com as armas de Ares, defenderá a beleza, ainda que amarga, corruptora, dolorosa, lutuosa, violenta, assustadora. “– Quero morrer em beleza”, brada a paixão no poema “Fatalidade” do esquecido António Botto [5]. E de modos complementares e adversativos nas páginas que seguem.

Juiz de Fora, outono de 2015

... e a autora


Notas

[1] Lembro a saudação que, na “Ode triunfal”, o engenheiro sensacionista de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos”, dirige à Musa máquina: “Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!” (PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1983., p. 242). E ainda alguns versos da “Ode marítima”: “Nada perdeu a poesia. E agora há mais as máquinas / Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida / Comercial, mundana, intelectual, sentimental, / Que a era das máquinas veio trazer para as almas” (Idem, p. 267).
[2] No “Evangelho segundo São João”, capítulo 1, versículo 14, “E o Verbo se fez carne, / e habitou entre nós...” (A BÍBLIA de Jerusalém. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulinas, 1989).
[3] HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
[4] “A madureza, essa terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela, // a madureza vê, posto que a venda / interrompa a surpresa da janela, / o círculo vazio, onde se estenda, / e que o mundo converte numa cela. // A madureza sabe o preço exato / dos amores, dos ócios, dos quebrantos, / e nada pode contra sua ciência // e nem contra si mesma. O agudo olfato, / o agudo olhar, a mão, livre de encantos, / se destroem no sonho da existência” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 18).
[5] BOTTO, António. As canções de António Botto. Lisboa: Livraria Bertrand, 1956, p. 84.

Um comentário:

  1. HÁ UM LIVRO BÍBLICO QUE NÃO FAZ PARTE DA BÍBLIA DE ALGUNS DOS EVANGÉLICOS,TALVEZ, POR, ACHAREM-NO ERÓTICO, SEDUTOR: ESTER; BELA, RECATADA, FOI A PREFERIDA DO REI ASSUERO E PARTICIPANTE MUITO ATIVA, E ESTRATÉGICA NO GOVERNO EM TODOS OS SEUS LIMITES E TERMOS. GRACIOSA, O MARIDO LHE TINHA UM GRANDE APREÇO. SABIA COMO FAZÊ-LO, SÃO ALMAS QUE NÃO ENVELHECEM.

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