Prefácio do livro Sobre amor e ervilhas,
de Maria Diva Boechat
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)
Fernando Fiorese
Amore, in
qual scola,
da qual
mastro s’apprende
la tua sì
lunga e dubbia arte d’amare?
Torquato
Tasso,
Aminta, ato II, cena III
Tudo está dito.
No Ocidente, ainda que, vez ou outra, uma Musa “inédita” possa surpreender a
poesia [1], parece-me que os mitos das sociedades tradicionais (incluindo o
repertório imensurável das narrativas bíblicas), as fábulas e os contos de
fadas já disseram tudo. Assim, escrever talvez não seja mais do que, por um
lado, a busca de entonações distintas e hodiernas para o já-dito e, por outro,
a tentativa quase vã de escavar as incontáveis imagens e metáforas engendradas
pelas culturas orais, as quais acabaram por se perder entre os fósseis
cumulados ao longo do penoso trajeto entre a voz e a escrita.
Os poemas
coligidos por Maria Diva Boechat neste Sobre
amor e ervilhas fazem regressar os mitos de antanho e as narrativas
infantis, não para repeti-los, mas para transtornar, acrescer, encobrir,
deformar, desdizer, diminuir, desdobrar, torcer ou confundir o tantas vezes dito
e redito. Trata-se de uma manobra para alcançar a diferença do aqui e agora, de
uma artimanha forte e desrespeitosa – porque a poeta não é mulher de respeitos
– para apropriar e deslocar a tradição conforme as figurações e necessidades do
contemporâneo. Na sua matéria flexível, derivante e instável, ainda quando sob
registro escrito, os mitos deixam-se moldar pelas mãos de outros tempos, pelos
cuidados de outras vozes.
Não por acaso, personagens
fictícias (ou quase) – Ariadne, Dalila, Dionísio, as Fúrias, Helena, Páris, Prometeu,
Rapunzel, Sansão, Sêmele – se juntam sem distinção a figuras reais – Chico
Buarque, Chet Baker, Lucien Freud, Gaudí, Munch – e aos amigos da autora. Não
por acaso, cenários prosaicos – a casa da infância, o quarto conjugal, a oficina
do escultor Brennand, as paisagens marinhas, “a cidade toda em contramão” – se fundem
e confundem com lugares fabulosos – Éden, Babel, Labirinto. Porque tais personae e espaços são motor e matriz, agentes
e cenários do mito maior de que trata Maria Diva Boechat “com a mais pura
descrença / e desespero”, como confessa no poema “Prece”, mas também “com
galhofa e galhardia” (“Trágico”).
Delicadeza e
barbárie, alegria e horror, beleza e guerra, ficção e confissão. Tais são os
substantivos – porque, no desejo vigoroso e diligente de seus verbos, o mito é
sempre substantivo – que a poeta reúne e dispersa para operar o mito da paixão,
cuja abreviatura vigorosa e vertical nos dá no poema “Amor”: “Flor- /
CARNÍVORA”. E se digo paixão, ao invés de amor, é para demarcar a distância e a
diferença entre Eros (amor
concupiscientiae ou vulgaris) e
seu desdobramento espiritual, a Caritas
(ou amor divinus). Porque os avances
da metafísica cristã no empenho de domesticar o Eros grego, de aplainar as
vertigens do amor natural, de subjugar o corpo e suas paixões, tornando-as
patologias, encontraram na poesia e no imaginário um lugar de resistência par excellence. Talvez pela ousadia
humana, demasiado humana, de professar o avesso do Evangelho no presente da
lírica: E a carne se faz verbo e habita
entre nós... [2] Ousadia que não
falta à poeta:
Nada existe
além da carne:
pulsa por
pernas e bundas.
Invólucro do
morto –
incrédulo em
compreensões.
Quando o tempo
enferruja as
engrenagens,
o autômato se
esgueira pelos cantos
assombrando as
carnes frescas
que ainda
desfilam sua glória.
(“Autômato”)
Na lírica de Maria
Diva Boechat, Eros exsurge com as forças que rubricam o fruto do amor
clandestino de Afrodite e Ares (Vênus e Marte para os romanos), de forma que,
na flor da beleza, restará sempre a
rasura maiúscula e indelével da guerra, da carnificina. Daí a incidência quase
obsessiva nesses poemas do vocábulo “corpo”, secundado por signos que traduzem
antes a matéria bruta do que a simbólica do mesmo: carne, olhos, boca,
vísceras, pernas, sêmen, saliva, unhas, sangue, nervos, entranhas, veias,
coxas, língua, ouvidos, dentes, pele, face, cabelos, pé, juntas, calcanhares,
dedos, bundas. Sem olvidar outros tantos substantivos, verbos e adjetivos que o
amor erótico soletra na carne, tão próximos do júbilo quanto da morte. Na
medida em que propugna uma escrita do
corpo, o poema “Cartas ao mar” parece desvelar a poética da autora:
Ao quebrar a
garrafa:
uma carta.
Em mim, três
desejos despertos:
fonemas,
letras, sílabas...
Ao meu querer,
palavras
escorrem,
compõem o belo
e o terrível do corpo.
Diante do verbo
encarnado,
o espanto:
fiz-me réplica.
Mas mudar o
corpo em verbo não indica qualquer linha de fuga, não implica qualquer
metafísica. (Aliás, aqui a “Metafísica” comparece entre a blague e o banal: “– A bolsa ou a morte! // Para resguardar minha
morte / entreguei bolsa, dedos, anéis, dente de ouro...” Ou como a última das
“Metas”: “Metáforas / Metamorfoses / Metafísicas”.) Pela palavra, o corpo não se eleva nem se
avilta, não se redime nem se perde – continua sendo o que é: a beleza maior e o
campo de batalha onde digladiam as rapinas do tempo, as rugas da memória, os
demônios da sabedoria, os dédalos do outro, as urgências do desejo, as
iluminações da infância, as engrenagens do tédio, os desconcertos da linguagem,
as fúrias de nossos crimes mais diários.
A obra... |
O deus que
assombra e peleja no corpo dos poemas deste Sobre
amor e ervilhas é, decerto, o Tempo, o “Crono de curvo pensar” a que refere
Hesíodo na Teogonia [3] (v. 137), atribuindo-lhe,
por um lado, a gênese casual de Afrodite, deusa da beleza e do amor sensual,
das Erínias (as Fúrias dos romanos) e de outros colossos divinos quando da
castração do pai Urano e, por outro, a devoração dos próprios filhos (cf. Teogonia, v. 178-206/459-462). Porque “o
tempo ruge e morde” (“Liberdade”). O famélico Crono não mantém “vigilância de
cego, mas à espreita” (Teogonia, v.
466) continua a devorar todos nós, os mortais, desmantelando a beleza dos
corpos e, quando muito, substituindo-a pela “Ingaia ciência”, este enigma
aclarado por Carlos Drummond de Andrade [4]. Não são outras a revolta e a
questão da poeta em “Maçã de ouro”:
Quando eu não
for mais objeto de desejo
que barganhas
poderei fazer?
Enquanto
Helenas ensejarem guerras
o que restará a
meu corpo envelhecido
além da
maldição da sabedoria?
Seja do jardim
das Hespérides ou de Éris, deusa da discórdia, a maçã de ouro não é coisa destinada
aos mortais. A nós restam as breves eternidades, as belezas transitórias e casuais
que possam ensejar um “Éden”, ainda que menor e pessoal: “Quando brotam belezas
/ entre a matéria esgarçada da vida, / quase perdoo a existência”. Fazer guerra
contra o “Horologista” em nome da paixão e da beleza é a mais paradoxal das
tarefas: “Luto pela beleza // beleza, prenúncio de luto” (“Aniquilamento”). Mas
apenas na carne viva desta luta luminosa e desigual é possível arrostar a dor
da ausência de beleza, assinalada nos poemas abaixo:
Memória
O que mais me
dói:
no instante em
que morreu,
faltava-lhe um
botão na camisa.
Conjugal
O desbotar da
beleza é dor física.
Contra o
murchar do frescor
analgésicos
fraquejam.
Ao fim do
primeiro ato,
a realidade
fratura conexões elaboradas.
O bifurcar dos
caminhos impõe
o desmazelo das
entranhas.
Doem as
vísceras.
Resta o consolo
do café barato.
Plasticidade,
apenas às flores sobre a mesa.
O mesmo viés
trágico da existência humana que Maria Diva Boechat empresta dos mitos
greco-latinos contamina também o universo das fábulas e contos de fadas. Ainda
quando telúrica e luminosa – “Do barro retornarás com o sopro da alegria”
(“Meninos na chuva”) –, a memória da meninice não mitiga as dores do “desbotar
da beleza” e a infância mesma não se dá como um tempo reconquistável:
Surda e
sangrando
procuro a casa
da infância.
Porém, o anjo
deixou torto
o caminho para
os vitrais coloridos.
Aguardam-me
frios azulejos.
(“Liberdade”)
Não é possível
renunciar
ou reaver a
infância.
(“Trágico”)
Assim, as
narrativas guardadas na memória e perdidas com a infância se pervertem em figuração
do desejo erótico, como no caso de “A cigarra e a formiga” –
Na noite quente
a indiferença
estudada
de tuas pernas
desavergonhadamente
expostas
é provação para
meus nervos em flor.
A primavera
chega
me descobrindo
teu corpo
e a
insuportável espera
por tuas pernas
quedando-se exaustas
sobre as
minhas.
Desdenho o
inverno.
Quero rebentar
de cantar
com tuas pernas
cruzando
meus caminhos.
– ou ganham o peso e a gravidade
que a madureza impõe à consciência:
Impossível sono.
Embora as
tantas camadas de subterfúgios,
imprecisa culpa
espeta a
madrugada.
(“A princesa e
a ervilha”)
Embora sempre a
menor, a palavra é o modo da poeta de fazer corpo para o amor, de surpreender a
beleza em fuga, de afrontar o tempo predador, de não morrer de delicadeza. Afinal,
Eros resiste no séquito de Afrodite e, com as armas de Ares, defenderá a
beleza, ainda que amarga, corruptora, dolorosa, lutuosa, violenta, assustadora.
“– Quero morrer em beleza”, brada a paixão no poema “Fatalidade” do esquecido
António Botto [5]. E de modos complementares e adversativos nas páginas que
seguem.
Juiz de Fora, outono de
2015
Notas
[1] Lembro a saudação que,
na “Ode triunfal”, o engenheiro sensacionista de Fernando Pessoa, Álvaro de
Campos”, dirige à Musa máquina: “Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!”
(PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1983., p. 242). E ainda alguns versos da “Ode marítima”:
“Nada perdeu a poesia. E agora há mais as máquinas / Com a sua poesia também, e
todo o novo gênero de vida / Comercial, mundana, intelectual, sentimental, /
Que a era das máquinas veio trazer para as almas” (Idem, p. 267).
[2] No “Evangelho segundo
São João”, capítulo 1, versículo 14, “E o Verbo se fez carne, / e habitou entre
nós...” (A BÍBLIA de Jerusalém. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulinas, 1989).
[3]
HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano.
São Paulo: Iluminuras, 1995.
[4] “A madureza, essa
terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor
gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela, // a madureza vê,
posto que a venda / interrompa a surpresa da janela, / o círculo vazio, onde se
estenda, / e que o mundo converte numa cela. // A madureza sabe o preço exato /
dos amores, dos ócios, dos quebrantos, / e nada pode contra sua ciência // e
nem contra si mesma. O agudo olfato, / o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
/ se destroem no sonho da existência” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record,
1998, p. 18).
[5] BOTTO, António. As canções de António Botto. Lisboa: Livraria Bertrand, 1956, p.
84.
HÁ UM LIVRO BÍBLICO QUE NÃO FAZ PARTE DA BÍBLIA DE ALGUNS DOS EVANGÉLICOS,TALVEZ, POR, ACHAREM-NO ERÓTICO, SEDUTOR: ESTER; BELA, RECATADA, FOI A PREFERIDA DO REI ASSUERO E PARTICIPANTE MUITO ATIVA, E ESTRATÉGICA NO GOVERNO EM TODOS OS SEUS LIMITES E TERMOS. GRACIOSA, O MARIDO LHE TINHA UM GRANDE APREÇO. SABIA COMO FAZÊ-LO, SÃO ALMAS QUE NÃO ENVELHECEM.
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