[Artigo inédito]
Fernando Fiorese
O
poeta elabora sua personagem,
nela
passa a viver como em casa natal.
E
não é a casa natal?
Faz
a caiação da personagem,
cobre-a
de azul celeste e púrpura de escândalo,
adorna-a
de talha de ouro e asas barrocas,
burila-a,
murila-a
(alfaiate
de Deus talhando para si mesmo),
viaja
com ela pelo universo.
(ANDRADE, 2002, p. 809-11.)
Para a comadre Malu Ribeiro
À guisa de introdução
Permita-me o leitor uma breve digressão
acerca da gênese deste texto, pois assim não apenas esclareço a sua consanguinidade
com as leituras e interpretações de Sérgio MICELI (1996) em Imagens
negociadas: retratos da elite
brasileira (1920-40) e os limites que a este artigo se impuseram, mas
também – e à guisa de hommage – o modo como o afeto e a amizade operam
no domínio acadêmico: às vezes por tangência, fazendo dialogar escritas
complementares ou adversativas; outras por contaminação, engendrando linhas
que, embora sob uma única rubrica, são em verdade resultado de muitas mãos.
O texto que
aqui encontra a sua possível versão definitiva teve como incipit a incumbência
que, como professor neófito, recebi da Profa. Dra. Maria Lúcia Campanha da
Rocha Ribeiro de delinear os traços norteadores da correção de uma das questões
da prova específica do exame de seleção 2002 para a área de Teoria da
Literatura do então Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Sob o número 3,
a questão que se propunha aos candidatos era inter-relacionar,
com fundamento nas reflexões de Miceli, o quadro Retrato de Murilo (1930), pintado por Alberto da Veiga
Guignard, com o poema de Murilo Mendes (1901-1975)
intitulado “Confidência”.
Tendo a questão
proposta como motor e como âncora teórica a obra de Miceli, as linhas que então
rascunhei a título de parâmetro de resposta, algo em torno de lauda e meia,
deixaram-se contaminar tanto pelos textos elaborados pelos candidatos quanto
pelas iluminações que me ofertou a Profa. Malu Ribeiro no decorrer de toda uma
tarde de primavera dedicada à correção das provas, à qual seguiram-se outras
muitas conversas, sempre verticais e generosas, acerca da importância dos
retratos verbais e pictóricos na reconstituição da personagem engendrada por
Murilo Mendes, objeto da pesquisa então por ela coordenada, “Murilo Mendes:
retratos e traços da memória”.
Figurações do poeta visionário
A construção
da leitura e da interpretação dos retratos como “imagens negociadas” deve
considerar a possibilidade de surpreender indícios acerca das expectativas e
representações do retratado a seu próprio respeito, tendo em vista a
necessidade de projeção e prestígio, os modelos de excelência que deseja
imitar, os padrões de gosto que busca internalizar. Trata-se, em suma, de
identificar pistas que permitam desvelar as pretensões do retratado quanto ao
seu posicionamento na hierarquia de determinada sociedade, histórica e
culturalmente localizada.
Considerando
o repertório de imagens domésticas e públicas, a fatura do retrato se configura
como um empreendimento de legitimação visual, tendo em vista a complexidade da
negociação entre retratista e retratado, uma vez que, enquanto o primeiro
oferece a matéria expressiva aos cenários, à indumentária, aos adereços, às personae e demais instâncias de representação,
o segundo apela por suas expectativas em relação à modelagem de uma imagem
pública condizente com os níveis de investimento e consagração, bem como
adequada às suas orientações artísticas e político-doutrinárias.
Tais considerações permitem compreender o empenho do
jovem poeta Murilo Mendes de fazer-se retratar por Ismael Nery (figura 1), Cândido
Portinari (figura 2) e Alberto da Veiga Guignard, dentre outros, no sentido de
afirmar a sua presença e imagem na cena artístico-literária do Rio de Janeiro,
então capital federal. Ressalte-se que, recém-migrado de Juiz de Fora, Murilo
Monteiro Mendes encontra dificuldades para realizar o que Sergio Miceli
denomina a “tríplice sustentação” (MICELI, 1996, p. 7) da carreira literária,
qual seja, “a colaboração continuada na imprensa da época (jornais e revistas
ilustradas, bem entendido), a produção de obras autorais, e a inserção no serviço
público em condições de interferir o mínimo possível nas atividades
propriamente intelectuais” (MICELI, 1996, p. 9). O registro das colaborações de
Murilo Mendes em jornais e revistas (embora não pormenorizado na edição de Poesia
completa e prosa) atesta que, apenas após a publicação da obra autoral Poemas
em 1930, o autor passou a colaborar com relativa regularidade em revistas e
jornais cariocas (Boletim de Ariel, A Ordem, Lanterna Verde,
O Jornal).
Figura 1 |
Figura 2 |
Durante os
anos 1920, Murilo mantém (sob pseudônimo) as colunas “Chronica mundana” e
“Bilhetes do Rio” no jornal A Tarde, de Juiz de Fora, e publica poemas
nas principais revistas do Modernismo (Revista de Antropofagia, Verde,
Revista Nova), mas apenas no princípio da década seguinte parece abrir espaço
junto às publicações cariocas (com prevalência de artigos sobre literatura e,
sintomaticamente, pintura), bem como publicar, mesmo que às custas do pai e sob
o selo da editora juizforana Dias Cardoso, a sua produção lírica, alcançando
visibilidade perante seus contemporâneos, como atestam as resenhas publicadas à
época por João Ribeiro e Pedro Dantas e o prêmio da Fundação Graça Aranha
concedido ao referido Poemas (1930).
No entanto, apesar das tentativas da família, a sua inserção no serviço público
não se realiza nunca em definitivo nem conforme as necessidades de sustentação
da carreira literária. E o poeta vive sem atividade regular ou emprego estável,
o que decerto exigirá dele empenho redobrado no sentido de fixar uma imagem
pública, pois necessário compensar o seu modo maladroit para qualquer
tipo de ocupação.
Parece-me
significativo que, por ocasião da publicação de Poemas, Murilo seja retratado
duas vezes por Guignard. No primeiro quadro (figura 3), datado de 1930, o cenário
opera a inserção do poeta migrado na cena-símbolo da capital federal. Talvez retratando
Murilo Mendes no quarto modesto da pensão onde residia na Praia de Botafogo,
Guignard ocupa quase todo o fundo superior da tela com a Baía de Guanabara (incluindo
os morros do Pão de Açúcar e da Urca), num processo de substituição e ampliação
do locus em que se insere o poeta.
Tal procedimento permite inferir a realização no domínio imagético da
expectativa de inclusão definitiva de Murilo Mendes no cenário
artístico-literário carioca, sendo que as cortinas que ladeiam a janela e a
posição central do próprio retratado são sintomas desta entrée do poeta
no palco da capital federal. Embora com apenas 29 anos à época, o manejo por
Guignard dos traços fisionômicos de Murilo Mendes, particularmente no que se
refere ao caimento dos ombros, à redução do volume do cabelo e ao alongamento
da fronte e do pescoço, conferem à sua imagem um aspecto respeitável e senhoril.
Os olhos baços e delineados de modo tênue, como que ausentes ou em devaneio,
talvez prenunciem o futuro epíteto de “poeta visionário”, enquanto os lábios
carnudos traem a musa erótica que Murilo ainda não desvelara por completo no
livro inaugural. Já a indumentária, mesmo simples e algo despojada – paletó
preto sobre camisa branca, com o adereço da gravata –, ao contrário de denunciar
as dificuldades materiais do retratado neste período, indiciam a sua ousadia
tipicamente moderna – através da gravata ocre –, aliando-se à elegância do
precoce senhor de meia-idade um despojamento algo franciscano, ao modo mesmo de
um devoto do santo que ele denominará um “arrabbiato fuorilegge”.
No quadro realizado
em 1931 (figura 4), Guignard também retrata o poeta no interior de um quarto, desta
feita ladeado ao fundo por um quadro de Ismael Nery na parede e por uma janela que
emoldura uma paisagem rural. De acordo com Miceli, pode-se
enxergar
nesse retrato uma intenção narrativa de equacionar a figura de Murilo entre um
‘antes’ das raízes interioranas, representado pela paisagem com casinha e
vegetação à esquerda, e um ‘depois’ sinalizado pelo quadro assinado com as
iniciais cruzadas I/N (Ismael Nery), em que se destaca um arlequim (MICELI,
1996, p. 70).
Neste sentido, em contraposição ao primeiro retrato, a
indumentária algo casual e “futurista” – suéter de listras pretas e vermelhas,
gravata multicolorida e quase afrouxada sobre a camisa branca de peito plissado
–, os cabelos mais fartos, o rosto e o pescoço menos inclinados e alongados, os
olhos mais abertos e bem delineados emprestam ao poeta uma figuração um tanto
jovem e moderna, simbolicamente de costas para a paisagem interiorana e na
companhia de uma das obras daquele que denominou “Ismael Primus Interpares Pinxit”. De um retrato a outro, mantém-se
a aparência compenetrada, ensimesmada e respeitável, bem como os lábios
carnudos e uma certa ousadia nas vestimentas.
Figura 4 |
A busca no/do retrato
Considerando
o que acima ficou escrito, o poema “Confidência”, publicado no volume As
metamorfoses (1944) e transcrito a
seguir, enseja também considerações acerca da modelagem da figura do
poeta, desta feita a partir do seu próprio discurso poético.
Digo-te que
me busco em todos os retratos,
Na água de
muitos rios
E não me
reconheço.
Digo-te que
invento o livro de imagens
Para
ressuscitar a infância
– Não a
verdadeira, mas a que sonhei.
Digo-te que
procuro um ponto sobre a terra
Onde o homem
possa respirar.
Digo-te que
abracei a estátua do Ente dos entes
E que meus
braços foram em peregrinação ao desconforto.
(MENDES,
1995, p. 366)
Abundam na
obra muriliana exemplos análogos (embora nem sempre tão eloquentes) ao daquela
“postura simbiótica” (MICELI, 1996, p. 70) referida por Miceli quando da
abordagem do quase decalque entre as imagens do poeta visionário e do pintor
Ismael Nery (figura 5). Nas inúmeras hommages a escritores, artistas
plásticos, compositores, poetas, pensadores e personagens da religião cristã, do
círculo familiar e anônimos, o poeta procura o símil no repertório de
atributos, poderes e máscaras do outro, para assim engendrar a sua própria
imagem pública. Em Murilo, a escrita do outro
será sempre uma forma enviesada de também realizar a escrita do eu. De tal forma que o poeta pode
afirmar “Digo-te que me busco em todos os retratos”, embora, sob o signo da metamorfose
heraclítica – “Na água de muitos rios” –, não seja possível reconhecer-se.
Resta, então, ressuscitar a infância sonhada, inventando um livro de imagens
condizentes com suas ideias, sonhos e projetos, engendrando a origem e o lugar
sem desconforto para, talvez ali, desvelar a figuração primeva, anterior à
queda, à orfandade biográfica e bíblica. Para talvez ali abraçar e fundir-se à
“estátua do Ente dos entes”, símbolo da eternidade materializada no tempo, interrompendo
a peregrinação infinda em busca da própria imagem.
Figura 5 |
Num bricolage de que participam
rostos reais e máscaras inventadas, fatos biográficos e fabulações do sujeito,
pessoas e personagens, paisagens e cenários, Murilo Mendes experimenta e apura
as suas múltiplas figurações nos retratos dos pintores que lhe são próximos e
contemporâneos. Para aquele que, no poema “Epitaffio” do livro Ipotesi, confessa que “Amò prima di
tutto... / [...] / il teatro fuori del teatro” (MENDES, 1995, p. 1507), é esta
uma das muitas estratégias na elaboração de suas próprias dramatis personae, do mitologema metamórfico Murilo Mendes.
“Personagem de enigma”, tal se nomeia em “Pirâmide” (MENDES, 1995, p. 265),
construída tanto por seus feitos estrambóticos e suas autoficções – a ponto de
Carlos Drummond de Andrade defini-lo como “Criador manipulador participante /
do espetáculo / ele próprio é o espetáculo...” (ANDRADE, 2002, p. 811) – quanto
pelas fantasias engendradas pelos amigos, como testemunha Otto Lara Resende no
perfil que traça do poeta em O príncipe e
o sabiá:
Confesso que, a certa altura, andei inventando alguns casos de Murilo
Mendes. Misturava em tinta surrealista um capote negríssimo, uma data (1928,
evidentemente) e o próprio Espírito Santo, e eis aí mais um “caso do poeta”.
Mas eram apócrifos, evidentemente, e eu jamais pretendi que fossem outra coisa
(RESENDE, 1994, p. 18).
Considerações finais
Consoante as complexas negociações entre retratista e retratado, a fatura
das figurações pictóricas de Murilo Mendes se configura como um empreendimento
de legitimação visual no âmbito do modernismo carioca, na medida em que tanto
enseja atestar a pertença do autor àquele circuito intelectual e artístico,
quanto modelar uma imagem pública condizente com os níveis de investimento e
consagração, bem como adequada ao desvelamento de sua filiação estética e
político-doutrinária e das relações que mantém com seus pares. Cenário,
indumentária, adereços, persona e
demais instâncias de representação presentes nestes retratos testemunham as
pretensões e expectativas do retratado no sentido não apenas de materializar a
sua posição na hierarquia do cânone em devir, mas também de apresentar as
credenciais com que participa dos jogos da política literária. Embora radicado
no Rio de Janeiro desde 1917, apenas a partir da sua primeira publicação
autoral Murilo Mendes (Poemas, 1930)
passa a colaborar com relativa regularidade em revistas e jornais cariocas,
decerto também graças à “caiação da personagem” engendrada pelos retratos
referidos.
Anos 1920 (?) |
Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do
mito. Blumenau: Edifurb, 2003.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1995.
MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40).
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RESENDE, Otto Lara.
O príncipe e o sabiá e outros perfis.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Estejamos sempre atentos para a leitura de suas postagens: enriquecimento certo.
ResponderExcluirMuito agradecido, Cecília!
ExcluirAbraços,
Fernando
Muito agradecido, Cecília!
ExcluirAbraços,
Fernando