quarta-feira, 17 de outubro de 2012

[Sobre Buster Keaton]*




 O clown e a máquina

Fernando Fiorese

No domínio do pensamento finissecular, as novas tecnologias ocupam uma posição central. Seja para condenar o uso predatório da imagerie desenfreada ou para realizar o trabalho de luto das formas teóricas e críticas que propugnam pela oposição homem-máquina, seja para desvelar as possibilidades das poéticas tecnológicas ou para questionar o narcotráfico das utopias (Eduardo Portella) que o virtual enseja, empenham-se os pensadores da Baixa Modernidade na inelutável tarefa de enfrentar o enigma da técnica. Na medida em que veiculam percepções, produzem subjetividades e anunciam os paradigmas de novas formas de pensar, sentir e estar no mundo, as tecnologias se tornam um vocativo para o pensamento. 

  Sherlock, Jr. (1924)                                   The navigator (1924)
 
A Revolução Industrial criou um ambiente de contínuo devir, transformou as atividades perceptivas e cognitivas e colocou ao nosso dispor tanto técnicas de reprodução dos aspectos dinâmicos da vida moderna quanto de produção de um novo real. A adaptação do homem à instabilidade cronotopológica instaurada pelo progresso dromológico (Paul Virilio) encontrou nos veículos de transporte e de comunicação o treinamento perceptivo adequado. Com as próteses de deslocamento e de visão, aprendemos as lições do tempo tecnológico e do espaço aleatório, da transferência maquínica de nossos sentidos e da consanguinidade entre homem e instrumento.

    Seven chances (1925)                       Go West (1925)

Embora anterior ao advento da sociedade telemática, a filmografia do ator e diretor norte-americano Buster Keaton** (1895-1966) nos oferece a oportunidade de pensar algumas das questões que agitam os debates acerca da acoplagem entre homem e máquina. A obra do “geômetra do riso” satiriza a sociedade empenhada na realização dos grandes fins tecnológicos, apresentando um insólito sumário dos modos de relação do humano com o mecânico. O maquínico contamina a montagem e o ritmo do filme, a estrutura da narrativa, a construção das gags, as qualidades e potências do ambiente, os gestos, os comportamentos cinéticos e as trajetórias do personagem.

The General (1927)

Mas o herói keatoniano não duela com a máquina, e sim com o imenso e catastrófico universo que ela engendra. A máquina é antes um aliado, um órgão que lhe permite adaptar o esquema sensório-motor aos desafios do ambiente urbano-industrial. A máquina se torna o lugar de habitação. E assim o clown pode inventar máquinas-casas, máquinas-trens, máquinas-barcos, máquinas-cinemas... Ou converter o próprio corpo em mecanismo, em instrumento. Não para realizar os grandes fins tecnológicos, mas para a conversão dos sistemas maquínicos ao minúsculo, às necessidades do homem comum.

Steamboat Bill Jr. (1928)

Os gadgets que o personagem manipula ou inventa demonstram as possibilidades do agregado homem-máquina diante dos perigos do universo tecnológico: não a submissão à mecanicidade pura, mas a educação dos sentidos na dinâmica da realidade. Quando a situação exige, o elemento técnico potencializa o corpo para o duelo, transformando-o num dispositivo que penetra na máquina do mundo para contaminá-la com o nonsense cômico ou as finalidades humanas. Mesmo sob o risco do acidente e da morte, o herói aceita o desafio de desvelar o enigma da tecnologia para construir o corpo, a percepção e os afetos do homem futuro. Neste sentido, as thrill comedies de Keaton funcionam não apenas como máquinas de rir, mas também máquinas de pensar, de questionar os agenciamentos que inauguram a relação do homem com a tecnologia.

The cameraman (1928)
 
Publicado originalmente no
Jornal do Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Juiz de Fora, 1º de maio de 1997.

(*) Os interessados na obra de Buster Keaton podem tentar conseguir um raro exemplar do meu ensaio Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad (São Paulo: Cone Sul, 1998).
 (**) Para download dos filmes de Buster Keaton em domínio público, acessar: http://archive.org/search.php?query=Buster%20Keaton 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Escrever à distância



Fernando Fiorese

Há os que usam a palavra para excomungar o outro e o mundo, submetê-los, colocá-los na distância medida e adequada à vigilância, ao controle. Trata-se de fazer dela não mais que uma arma, um instrumento a serviço do poder político, econômico, religioso, ideológico ou de classe. Também há aqueles que, com a irresponsabilidade dos maus pornógrafos ou dos falsos moralistas, tomam a palavra para conduzi-la à ruína, gastá-la em frivolidades, até que nada reste do sentido, senão a linha interminável e enfadonha do tagarela. E há ainda, talvez na fronteira entre os dois tipos anteriores, os que encontram na palavra um artifício para encobrir a realidade, mudá-la em algo mais próximo dos seus devaneios, construir um mundo conforme os seus desejos. São estes os mentirosos patológicos e os delirantes contumazes.
Em seus numerosos desdobramentos e variantes, estes usos da palavra participam dos nossos muitos modos de escrever. E não creio que qualquer um de nós esteja livre de suas armadilhas, exceto quando, cientes da miséria e da grandeza da linguagem, nos empenhamos em escrever com o cuidado de quem afina um instrumento, de quem prepara a voz para participar do canto coral da humanidade. Tais considerações assaltam este cronista aprendiz quando, diante do computador, procuro acolher o convite que o Jornal de Angola me dirige através de meu ex-aluno Augusto Alfredo, atual editor de Economia do único diário angolano. E me assaltam não na forma retilínea, amena e prosaica com que procurei traduzi-las nas linhas anteriores, mas ao modo de questões que amiúde interrompem a escrita, transtornam o saber sabido e, ao mesmo tempo, acionam o desejo de fazer da palavra o lugar do encontro humano.
Quem poderá falar a palavra capaz de transpor as diferenças e encontrar as identidades entre povos tão distantes e tão próximos quanto o angolano e o brasileiro? O que pode dizer este estrangeiro àqueles que conheço apenas por livros, jornais, revistas ou, quando muito, pelas palavras vivas de outros que no Brasil foram também estrangeiros? Como escrever para um leitor que está separado de mim não apenas por um oceano físico, mas também histórico e cultural? Quando calar ou aumentar o volume da voz? Quando amenizar o verbo ou usar de palavras ásperas? Quando investir na lógica dos argumentos ou apelar para a poesia dos sentidos se tão pouco sei das paisagens e dos aromas de Angola, do coração e da mente do leitor a que me dirijo? Onde colocar o desejo de escrever próximo, de falar cara-a-cara, de me tornar íntimo e confidente quando qualquer uma destas palavras, tão familiares para mim, pode ser um completo mistério para os amigos que procuro na distância? Por que, afinal, arriscar-me neste dizer em prosa o que vai pelos dentros de um homem, como pudesse ultrapassar as fronteiras e tocar o ombro do leitor para fazê-lo ver o que nos reúne?
São estas as questões que movimentam meus dedos sobre o teclado. Não tenho respostas, nem espero obtê-las. Escrevo apenas porque elas me impulsionam, como um dia outras questões fizeram com o menino (que perdi e aqui recupero) diante das primeiras letras do alfabeto. Entre pasmo e amedrontado, tateando as curvas da escrita e os abismos do significado, também aquele menino nada sabia – e pouco aprendeu depois disso – do mundo que pretendia mudar em palavras. E se o homem maduro sabe que a palavra não muda o mundo, o menino teima enquanto escrevo. Está outra vez no quarto da casa paterna, a bordar algumas palavras porque as quer mais belas, a rasurar outras que acredita ameaçadoras ou perversas, a apequenar umas tantas por julgá-las demasiado altas para seus olhos.
Este o menino que em mim escreve, fechado em quatro paredes e tendo as palavras como janelas. Ele não cessa, ainda quando o verbo amedronta ou queima o papel. Ele não cansa de desaprender a gramática e a semântica apenas para, uma vez mais, ter o espanto da descoberta. Ainda posso vê-lo deitado de bruços, lápis em punho, a escavar o caderno de caligrafia como quem desmonta um brinquedo e com suas peças faz muitos outros. Porque a palavra não é mais que isso, um brinquedo que o acidente conserta e assim se oferece ao leitor para outros desmontes. E logo que surge uma qualquer atração, seja o corpo da vizinha, um inseto estrangeiro, um velocípede vermelho ou o reclame do circo, o menino interrompe o lápis e procura na matéria do mundo o que as palavras apenas anunciam. Mas trata-se de uma fuga breve, embora intensa, porque o menino confia que na palavra possa reunir a vizinha, o inseto, o velocípede, o circo – e assim experimentar as suas pequenas eternidades. E se ele empresta alguma coisa a este que agora escreve, perdidas as ilusões e a inocência, não é outra coisa senão o saber que a palavra nos abre a realidade, nos coloca à procura das coisas, nos permite a comunhão com o outro, ainda quando se tem de escrever à distância de um oceano.

Publicado originalmente no Jornal de Angola,
Suplemento “Vida Cultural”, Luanda (Angola), 28 set. 2003, p. 2.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A flor do meu esquecimento




Fernando Fiorese

Aos 40 anos, torna-se menor o medo do ridículo, a tensão física muda em tensão lírica, enfrenta-se o espelho com mais tolerância e generosidade, declina a mania de perfeição, aprende-se o saudável esquecimento e o prazer das ficções na própria biografia. Aos 40 anos, sem afetar pudor ou auto-piedade, podemos enfim reconhecer as nossas muitas ignorâncias, os nossos pequenos crimes diários, os traumas inconfessáveis, as covardias e temores escondidos, as incompletudes jamais preenchidas.
E mais, podemos confessar essas faltas e desvios até para um desconhecido que nos surpreenda na fila do banco ou na sala de espera do dentista. Trata-se mesmo de um ritual de purificação, de um acerto de contas conosco e com o que fizemos de nossa vida, de reconhecer o homem e suas circunstâncias. Trata-se de aceitar que, embora desejando uma epopeia, a nossa vida não foi mais que a mistura de drama burguês e comédia, na qual as lágrimas apenas umedeceram o lenço e os risos cessaram com o esquecimento da piada.     
Ah, quantos livros não li por preguiça ou excesso de trabalho, quantos amores adiei com receio de errar, quantas conversas interrompi por impaciência ou pressa, quantas viagens cancelei para resguardar-me do clima ou dos perigos da estrada, quantas palavras não disse por medo de ser inconveniente ou demasiado amoroso, quantos silêncios guardei para evitar a entrega ou ferir o outro, quantos idiomas não aprendi porque não soube acomodar a língua à pronúncia estrangeira, quantos filhos mais não tive por temer os olhos do futuro.
Ah, meu caro leitor, aos 40 anos posso enfim confessar os horizontes que desconsiderei ou perdi porque tinha os olhos enterrados no chão, o pânico de ser confundido com um homem comum e banal, os poemas que escrevi para me vingar de algum desafeto, os filmes em que cochilei, o desdém pelas frutas que desejava mas minhas mãos não alcançaram, os bailes em que fingi uma torção no pé para não dançar, a timidez que invento para livrar-me dos compromissos sociais e dos que considero enfadonhos, as flores que deixei murchar no jardim ao invés de colhê-las para uma qualquer namorada.
Falando flores, falo primavera, talvez porque desde o dia 23 de setembro esteja ela empenhada em pronunciar suas cores, seus aromas, suas luzes contra as janelas do inverno e transformar a ventania em brisa e antecipar as manhãs e revigorar as flores desmanteladas pela última chuva de granizo. Falando flores, assim de modo genérico, falo de uma das minhas mais sentidas e lamentáveis ignorâncias: tenho pouco ou nenhum conhecimento sobre elas.
Talvez porque seja não mais que um enamorado das palavras, posso enumerar o nome de algumas – cravo, rosa, jacinto, tulipa, hortênsia, violeta, magnólia, lírio (e mais não sei). Mas não esperem que as identifique num jardim ou na floricultura, que discorra sobre suas espécies e variedades, suas cores, aromas e períodos de floração. No entanto, desconhecê-las não me impede de apreciar, de desejar as flores, como se aprecia e se deseja uma mulher que conhecemos apenas de nome ou de vista.
E foi este desejo e os avanços da primavera que me levaram à floricultura, onde a memória dos lábios da namorada se impôs num belo vaso de flores entre o vermelho e o violeta. Com o cuidado de quem carrega nas mãos a própria primavera, atravessei a cidade para depositar as flores aos pés de Bárbara. No entanto, o que deveria ser um tributo aos sentidos, uma declaração de amor, um pequeno rito em prol da instalação definitiva da primavera, não fez mais do que me defrontar com a minha cabal ignorância.
– Que flores lindas! – disse-me Bárbara antes de despetalar os seus lábios nos meus. – Qual o nome delas? Tinha de outras cores? Precisam ser aguadas de quanto em quanto tempo? Será que elas gostam de luz direta? Podem ficar na varanda? Lá bate muito sol. E venta...
Tantas perguntas e a minha ignorância. Confessável porque tenho 40 anos, porque sei mudá-la em riso ou em crônica. Mas ainda assim uma falta que me torna menor, um vazio que carrego e já não consigo nem quero esconder. (Ah, minha amada, pouco ou nada sei desta e das demais flores, senão colher nelas o cheiro do seu corpo, a maciez da sua pele, a cor dos seus lábios...) Poderia ter-lhe dito o que aqui vai entre parêntesis, mas corri de volta à floricultura e, sôfrego, repeti à vendedora cada uma das perguntas de Bárbara. E ali, sob o olhar de desprezo de uma inteira floresta de cores e aromas, era apenas um menino boquiaberto a receber da professora, alta e generosa, a lição da qual estive ausente, desde o nome da flor – gloxínia – até os modos de cuidar dela. Quanto a Bárbara, bem, Bárbara tornou-se a flor do meu esquecimento.    
 
Publicado originalmente no Jornal de Angola,
Suplemento “Vida Cultural”, Luanda (Angola), 12 out. 2003, p. 2.