quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O CRONISTA QUE NOS FALTAVA


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Prefácio do livro Passeio pela cidade, de Juliano Nery
(Juiz de Fora: Funalfa, 2013)

Fernando Fiorese

Saber orientar-se numa cidade não significa muito.
No entanto, perder-se numa cidade, como alguém
se perde numa floresta, requer instrução.
Walter Benjamin, Obras escolhidas II: Rua de mão única

Em meados do ano 2000, por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora, o jornal Tribuna de Minas acolheu alguns textos que escrevi sob o título geral de Plano estratégico de Juiz de Fora. Eram crônicas nas quais, após cerca de 30 anos de residência quase ininterrupta nesta cidade, intentava desvelar algumas poucas realidades e outras muitas ficções que definem o lugar, o tempo e o ser juiz-foranos. Numa dessas crônicas, intitulada “A cidade por trás das manchetes”, lançava a seguinte indagação: “Onde os cronistas que humanizam os espaços da cidade, doando sentidos, personagens e movimentos à nossa cena cotidiana?”
Nenhuma cidade pode prescindir de um ou mais cronistas para inscrever no seu livro de registros os acontecimentos efêmeros, as figuras anônimas, os dramas menores, as paisagens transitórias e transitadas. Mais do que o jornalista ou o poeta, o cronista é o “pequeno historiador urbano” a que refere Drummond no poema “Nosso tempo”. Trata-se daquele que, com seus dois dedos de prosa, oferece aos leitores o fio de Ariadne com que penetrar os enigmas de uma cidade diária e pedestre, concreta e polifônica. Na sua escrita menor, situada na região difícil entre o jornalismo e a literatura, o cronista realiza a tarefa ingente de fazer da cidade que habitamos a cidade que nos habita, de realizar a conjunctio oppositorum entre as rudezas prosaicas da realidade urbana e o açúcar das memórias, sonhos e ficções que nos permitem partilhar um mesmo coração civil.
A contrapelo de tais considerações, há décadas a imprensa juiz-forana tornou-se e continua avessa à presença de cronistas em suas páginas. Sequer um mísero rodapé restou àqueles que se dedicam a traduzir em palavras “a vida ao rés-do-chão”, como Antonio Candido intitulou o seu já clássico ensaio sobre a crônica. Desde José de Alencar até Carlos Herculano Lopes, passando por Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Luis Fernando Veríssimo, Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro e muitos outros, os nossos poetas e escritores emprestaram a sua pena aos jornais e elevaram à condição de personagem mítica as cidades que tinham como lugar de habitação.
Porque não há cronista do mundo, não há cronista cosmopolita. Todo cronista é cronista de uma cidade – às vezes, de um bairro: lembremos a Copacabana de Rubem Braga. Talvez porque, para este perscrutador de minúcias e instantes, este detetive dos crimes ínfimos, este biógrafo das vidas menores, este retratista de personagens em fuga, a geografia de uma única rua seja um território demasiado extenso, percorrido a passos miúdos com sua lupa de precisão e afeto. Todo cronista é mesmo um escritor de província, mas nunca um provinciano, uma vez que alarga o lugar da escrita ao ilimitado do cosmos humano. E se os jornais da cidade lhe negam espaço, perdem os jornais, mas não a cidade e os leitores. O cronista sabe outras tantas estratégias de se infiltrar e oferecer a sua prosa como instrumento de reflexão (no sentido intelectual e ótico) sobre e da comunidade.

O autor, no traço de Raphael Salimena...

E não é outro o caso de Juliano Nery, que neste volume reúne algumas das crônicas que publicou no portal Acessa.com entre 2010 e 2012. Tendo Juiz de Fora como lugar da escrita, tal recolha empenha-se por desvelar uma cidade que permaneceria oculta por detrás das manchetes dos jornais e dos noticiários televisivos não fora o empenho do cronista em registrar as suas misérias e as suas grandezas, de escavar os tempos e lugares ocultos sob a pátina dos discursos oficiais e oficiosos. Para tanto, Juliano Nery se faz flâneur e elege o passeio como linha de mira de uma prosa alheia às firulas e afeita à crítica e ao humor. Observador privilegiado – porque pedestre e despretensioso –, o cronista passeia Juiz de Fora com afeto e indignação para flagrar os desmazelos políticos, as idiossincrasias dos proverbiais “cariocas do brejo”, as pedras interpostas nos caminhos do cidadão comum, os personagens que permanecerão ad aeternum nas nossas memórias e, queiram os deuses!, jamais merecerão o opróbrio de ter os seus nomes emprestados a alguma praça ou rua. Estão aqui, traduzidos ao rés-do-chão, os bares que frequentamos, os embates de guarda-chuvas e sombrinhas de que participamos na “cidade das quatro estações”, os nossos modos estrangeiros e as nossas estranhas manias (mesmo as inconfessáveis). Está aqui uma cidade inteira em miniatura – caricatura de todos e de cada um de nós, fino desenho de uma pena que sabe o traçado da larga Avenida Rio Branco e, talvez, o ponto ocupado na nossa geografia pelo Beco do Sapo.

... e a obra

Juliano Nery partilha comigo e muitos outros uma condição fulcral do juiz-forano: não nasceu na cidade, migrou de São Lourenço (Sul de Minas) e aqui se estabeleceu de mala e cuia, apesar da vida em trânsito. Porque o juiz-forano é, originariamente e antes de tudo, um “ser do trajeto”, aquele que demora às margens do Caminho Novo, tensionado entre as promessas do ouro nas Minas e o fausto da Corte. E esta condição estrangeira do cronista parece ser a força motriz de seus passeios pela cidade, os olhos armados para surpreender as diferenças que singularizam Juiz de Fora e seus habitantes.
Eis o cronista que nos faltava. Como queria o poeta de “Mãos dadas”, comprometido com “o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente”, comprometido com a cidade, a escrita e o leitor. Eis Juliano Nery, o cronista que não espera mais de seus textos que a morte abrupta do dia seguinte, da edição seguinte – embora o acaso e os leitores exijam que alguns deles alcancem a pequena eternidade do livro.

Juiz de Fora, outono de 2013.


Post scriptum: 
Textos de Juliano Nery estão disponíveis no site