Depoimento
apresentado no VIII Seminário de Pesquisa
do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
UNESP/Araraquara
(set. 2007) [1]
Fernando Fiorese
Com os meus agradecimentos a
José Luiz Ribeiro, Jesualdo de Almeida Castro, Paolo Menichini,
Mauro Alvim, Maria Lúcia Outeiro Fernandes e Antônio Donizeti Pires.
Para o poeta, dizer do próprio processo
de criação é uma urgência e um impudor. Da urgência, nos salva a incipiente
tradição da vida literária brasileira de recolher o testemunho dos autores
acerca dos seus modos particulares de escrita – e, por via de conseqüência, a
parcimônia dos convites para que desvelem em público, de viva voce ou
mesmo por escrito, os segredos da carpintaria poética. Trata-se, no entanto, de
uma urgência apenas adiada, até que o impudor encontre ocasião de publicar a biografia
de um poema (Drummond), a psicologia da composição (João Cabral), o itinerário
de Pasárgada (Manuel Bandeira), o texto de consulta (Murilo Mendes)
ou outro qualquer título com que se designe essas confissões de ateliê mudadas
em verso ou prosa. Pessoal ou com fins proselitistas, meditabundo ou mero
manual de instruções, amoroso ou irritado, o escrutínio da oficina lírica
guarda algo de obsceno, próximo de um strip-tease que, quando realizado
à perfeição, mais aciona as ficções do voyeur do que desnuda os segredos
da carne.
E digo ficções porque com essas o poeta
adorna e eleva o trabalho extremo e sujo da criação, porque o gesto mesmo de
escrever está cercado de pudor igual ao de defecar, como ressalta João Cabral
de Melo Neto (1999, p. 413):
Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar.
Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.
Mas
não apenas o pudor interdita o dizer os intestinos da criação. Há, maiúsculo, o
acaso, do qual exsurge a obra como linguagem feita matéria. E como o acaso tem
um caos dentro, pouco ou nenhuma memória guarda o poeta desta deriva entre o
silêncio e a palavra. E quando a memória fraqueja ou falta, resta a ficção que,
análoga aos mitos genésicos, dá conta da passagem do caos ao cosmos. Mesmo
porque, aquele que escreve sobre o poema fora do poema, já não é poeta. Aquele
que dá a ver as verdades impudicas da criação não alcança erguer-se do caos. Em
prosa, o poeta desconcerta ou simplesmente engendra as fantasias de quando era
poeta, ou seja, de quando operado pelas forças rivais da linguagem. Assim, aos
eventuais leitores ofereço como horizonte deste texto as seguintes palavras de
W. H. Auden (1957, p. 50):
Aos olhos dos outros, um homem é poeta se escreveu um bom poema. A seus
próprios olhos, é poeta apenas no momento em que está fazendo a última revisão
de um novo poema. No momento anterior, era contudo apenas um poeta em
potencial; no momento posterior, é um homem que parou de escrever poesia,
talvez para sempre (Tradução minha).
Daí porque o que aqui vai escrito situa-se na fronteira entre o
testemunho e o ensaio – também e principalmente no sentido teatral do termo –,
ali onde a fala treme entre o eu civil e o eu da escrita.
Não que se pretenda pessoal e intransferível, pois urdido no deslize de muitas
vozes, no acolhimento do silêncio, na afirmação de lacunas e margens – como uma
apóstrofe, como um convite que seduza outras mãos leitoras para refazer as
ficções que no texto se faz e se desfaz. Aqui escreve a mão indestra,
aquela que participa do espanto de quando, diante do espelho, descubro o que me
escapa ou ultrapassa.
●
Não são poucas as ficções que derivam de e para o poema-livro Um dia,
o trem (FURTADO, 2008). Origem não há, mas posso mudar em fábula tanto o
convite de um amigo [2] no sentido de fornecer-lhe algum poema sobre trem para
um espetáculo teatral jamais levado à cena, quanto a epígrafe – “A infância é
ferroviária” – encontrada em certa crônica de Paulo Mendes Campos incluída numa
antologia que me emprestou o mesmo amigo, talvez com o intuito de garantir o
texto prometido. Tais circunstâncias, ainda que de modo velado, são registradas
na edição do livro. Assim, da dedicatória consta o nome do autor do convite
acima citado, enquanto em nota rubrico o período de elaboração do poema – o
qual, por demasiado, não me permitiria atender à demanda teatral –, bem como a
função motora da epígrafe do cronista mineiro:
Iniciei o poema Um dia, o trem em Cabo Frio durante as
férias de julho de 2000, concluindo na cidade de Juiz de Fora em meados de janeiro
de 2004, com alguns poucos acréscimos e muitas correções posteriores.
A crônica de Paulo Mendes
Campos, que este poema “aciona e epigrafa” (conforme aludo na seção "Mesma
água"), foi publicada sem título na Pequena antologia do trem: a ferrovia na
literatura brasileira, organizada por Laís Costa Velho... (FURTADO, 2008, p.
45).
A tais fabulações, embora o lugar-comum, posso acrescentar a infância
ferroviária que me faltou, uma vez que, nas palavras de Michel Foucault (1992, p. 31), “a ausência é o
lugar primeiro do discurso”. Quando muito, tive férias ferroviárias. Já que restaram na cidade natal (Pirapetinga) apenas as ruínas da estação, adornada de um
cúmulo de dormentes, trilhos e vagões carcomidos, o trem atravessou a minha
infância na narrativa dos adultos ou nos verões férreos e feéricos de um
município vizinho – Recreio –, cujo nome diz per se a substância do
lugar e do tempo. Por contaminação e tangência, a estrada de ferro figura nas
memórias inventadas da minha infância, desdobrando-se na poesia em metáforas
que rivalizam com aquelas outras que denomino costureiras [3]. Não por acaso, são estas as imagens
com que se desvela os modos e manobras da escrita de Um dia, o trem:
Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.
(FURTADO, 2008, p. 31)
São duzentos e quarenta e oito versos em trinta e uma estrofes, agrupadas
em quinze seções de duas e a última com apenas uma estrofe. Não há qualquer
rigor métrico ou rímico, embora a prevalência do decassílabo e das rimas
toantes. Tal costura deriva do “duelo do metro com o acidente” (Ibidem,
p. 29), através do qual o poema realiza a convergência do cálculo do discurso
paterno e das desmesuras de uma fala menina, do tempo perdido do adulto e do
presente puro da criança, do vocabulário algo culto do poeta e das palavras
simples da infância. Assim embaralhadas e confundidas, tais vozes intentam narrar
– este talvez o logro maior destas ficções – a morte simbólica do pai ante a
aparição abrupta do trem.
Não há aqui o pai maiúsculo de Freud ou Kafka, pois indecidível entre “o
menino que foi e nele avulta” (Ibidem, p. 13) e a ciência “dos muitos nãos
/ com que a madureza nos apouca” (Ibidem, p. 41), entre as lembranças da
infância ferroviária e as pequenas mortes que atravessou para estar ali, de
mãos dadas com o filho. Daí o “escrever por agulhas” que intitula a décima
seção do poema: reunir duas margens, costurar duas vozes, vizinhas e
estrangeiras a um só tempo, “porque nunca se trata da mesma água” (Ibidem,
p. 37), embora fluindo no mesmo discurso-rio. Ao menino, “sem palavras ou
peias”, importa a matéria trem, “aquela demasia de ferro e fuga, / crescida de
suas próprias engrenagens, / qual foguete quando no céu se abre” (Ibidem,
p. 19), enquanto ao “pai menor” resta apenas mudar menino e trem em metáfora, em linguagem. Porque
ainda quando “passar o menino a limpo e a luto” seja apenas “um acidente de
percurso” e não a “cura do desacordo / entre a mão que escreve e a com que
assino” (Ibidem, p. 41), a textualização da infância opera como um modo
de adiar aquela outra morte, “maiúscula e cabal” (Ibidem, 23). Ou, ao
menos, fazer dela também metáfora, figura de linguagem sob controle:
Há de entender o leitor tanto adiar,
pois o menino no adulto demora
conforme uma medida que lhe é própria:
não marca tempo, nem guarda o lugar.
Aponta a morte com o riso fácil
de quem, com o que foi e o que deveria,
reúne em si duas margens e, à revelia,
publica aqui outra edição do desastre.
(Ibidem, p. 43).
Às linhas autobiográficas e ficcionais deste bordado de muitas pontas
soltas e arremates precários, acrescente-se ainda a metalinguagem. Pois para
traduzir o menino na bitola lírica, cumpre ao poeta fazê-lo conforme as lições
da infância ferroviária, qual seja, os modos “como no texto se dá a forma-trem”
(Ibidem, p. 25):
Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.
Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e esperta
uma voz de si mesma estrangeira
– e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.
(Ibidem, p. 35)
Na tensão entre poesia e prosa, entre cálculo e desastre, entre madureza
e infância, Um dia, o trem desenreda a meada de memórias e vozes. Tal
fora a crônica de uma morte anunciada e sempre adiada pela palavra fantasmática
do menino que vigora na figura paterna e a desdobra em suas muitas ficções. São
essas artifícios necessários para que o poema, corpo sem origens e avesso ao
autor, seja o lugar onde dizer da criação é vencer a morte, ainda que no
precário domínio da linguagem. Mesmo quando um “corpo discorde”, tem por
motores a urgência e o impudor que faz esplender a escrita, seus intestinos,
suas misérias. Porque urgente também é o trem que baralha as linhas deste
autor/leitor e, despudoradamente, inaugura o horizonte que, para além do livro,
nos reúne.
“Análoga àquela que assombra o pai / quando dele o trem a altura subtrai”
(Ibidem, p. 39), uma outra morte enseja e remata este texto. Porque se
ao homem assoma o próprio cadáver quando o menino o ultrapassa, regozija-se
aquele desta morte feliz porque simbólica. Ao contrário, está morto por inteiro
(e, talvez, para sempre) o poeta que realiza aqui o trabalho de luto do que foi
vida e vigor nas secretas operações da escrita, num ritual sem esperança ou
garantia de ressurreição.
Notas
[1] Publicado em Matéria de poesia: crítica e criação, organizado por Antônio
Donizeti Pires e Maria Lúcia Outeiro Fernandes (Araraquara; São Paulo:
FCL-UNESP Laboratório Editorial; Cultura
Acadêmica, 2010, p. 207-214)
[2] Refiro-me a José Luiz Ribeiro, dramaturgo e
diretor do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação, vinculado à
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
[3] Não poucos leitores têm associado tais metáforas
costureiras a uma certa vizinhança com a escrita feminina, o que não
ousaria negar. No entanto, apenas para registrar um biografema, devo referir-me
às personagens masculinas do universo da costura, os alfaiates, ofício de meus
tios maternos.
Referências bibliográficas
Auden, W. H. Making and
judging poetry. The Atlantic, Washington, v. 199, n. 1, p. 44–52, jan. 1957.
FOUCAULT, Michel. O
que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro.
Lisboa: Veja, 1992.
FURTADO, Fernando
Fábio Fiorese. Um dia, o trem. São Paulo; Juiz de Fora: Nankin; Funalfa,
2008.
MELO NETO, João
Cabral. Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
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