Fernando Fiorese
Há os que usam a palavra para excomungar o outro e o
mundo, submetê-los, colocá-los na distância medida e adequada à vigilância, ao
controle. Trata-se de fazer dela não mais que uma arma, um instrumento a
serviço do poder político, econômico, religioso, ideológico ou de classe.
Também há aqueles que, com a irresponsabilidade dos maus pornógrafos ou dos
falsos moralistas, tomam a palavra para conduzi-la à ruína, gastá-la em
frivolidades, até que nada reste do sentido, senão a linha interminável e
enfadonha do tagarela. E há ainda, talvez na fronteira entre os dois tipos
anteriores, os que encontram na palavra um artifício para encobrir a realidade,
mudá-la em algo mais próximo dos seus devaneios, construir um mundo conforme os
seus desejos. São estes os mentirosos patológicos e os delirantes contumazes.
Em seus numerosos desdobramentos e variantes, estes usos
da palavra participam dos nossos muitos modos de escrever. E não creio que
qualquer um de nós esteja livre de suas armadilhas, exceto quando, cientes da
miséria e da grandeza da linguagem, nos empenhamos em escrever com o cuidado de
quem afina um instrumento, de quem prepara a voz para participar do canto coral
da humanidade. Tais considerações assaltam este cronista aprendiz quando,
diante do computador, procuro acolher o convite que o Jornal de Angola me
dirige através de meu ex-aluno Augusto Alfredo, atual editor de Economia do
único diário angolano. E me assaltam não na forma retilínea, amena e prosaica
com que procurei traduzi-las nas linhas anteriores, mas ao modo de questões que
amiúde interrompem a escrita, transtornam o saber sabido e, ao mesmo tempo, acionam
o desejo de fazer da palavra o lugar do encontro humano.
Quem poderá falar a palavra capaz de transpor as
diferenças e encontrar as identidades entre povos tão distantes e tão próximos
quanto o angolano e o brasileiro? O que pode dizer este estrangeiro àqueles que
conheço apenas por livros, jornais, revistas ou, quando muito, pelas palavras
vivas de outros que no Brasil foram também estrangeiros? Como escrever para um
leitor que está separado de mim não apenas por um oceano físico, mas também
histórico e cultural? Quando calar ou aumentar o volume da voz? Quando amenizar
o verbo ou usar de palavras ásperas? Quando investir na lógica dos argumentos
ou apelar para a poesia dos sentidos se tão pouco sei das paisagens e dos
aromas de Angola, do coração e da mente do leitor a que me dirijo? Onde colocar
o desejo de escrever próximo, de falar cara-a-cara, de me tornar íntimo e confidente
quando qualquer uma destas palavras, tão familiares para mim, pode ser um
completo mistério para os amigos que procuro na distância? Por que, afinal, arriscar-me
neste dizer em prosa o que vai pelos dentros de um homem, como pudesse
ultrapassar as fronteiras e tocar o ombro do leitor para fazê-lo ver o que nos
reúne?
São estas as questões que movimentam meus dedos sobre o
teclado. Não tenho respostas, nem espero obtê-las. Escrevo apenas porque elas
me impulsionam, como um dia outras questões fizeram com o menino (que perdi e
aqui recupero) diante das primeiras letras do alfabeto. Entre pasmo e
amedrontado, tateando as curvas da escrita e os abismos do significado, também
aquele menino nada sabia – e pouco aprendeu depois disso – do mundo que pretendia
mudar em palavras. E se o homem maduro sabe que a palavra não muda o mundo, o
menino teima enquanto escrevo. Está outra vez no quarto da casa paterna, a
bordar algumas palavras porque as quer mais belas, a rasurar outras que
acredita ameaçadoras ou perversas, a apequenar umas tantas por julgá-las demasiado
altas para seus olhos.
Este o menino que em mim escreve, fechado em quatro
paredes e tendo as palavras como janelas. Ele não cessa, ainda quando o verbo
amedronta ou queima o papel. Ele não cansa de desaprender a gramática e a
semântica apenas para, uma vez mais, ter o espanto da descoberta. Ainda posso
vê-lo deitado de bruços, lápis em punho, a escavar o caderno de caligrafia como
quem desmonta um brinquedo e com suas peças faz muitos outros. Porque a palavra
não é mais que isso, um brinquedo que o acidente conserta e assim se oferece ao
leitor para outros desmontes. E logo que surge uma qualquer atração, seja o
corpo da vizinha, um inseto estrangeiro, um velocípede vermelho ou o reclame do
circo, o menino interrompe o lápis e procura na matéria do mundo o que as
palavras apenas anunciam. Mas trata-se de uma fuga breve, embora intensa,
porque o menino confia que na palavra possa reunir a vizinha, o inseto, o
velocípede, o circo – e assim experimentar as suas pequenas eternidades. E se
ele empresta alguma coisa a este que agora escreve, perdidas as ilusões e a
inocência, não é outra coisa senão o saber que a palavra nos abre a realidade,
nos coloca à procura das coisas, nos permite a comunhão com o outro, ainda
quando se tem de escrever à distância de um oceano.
Publicado originalmente no Jornal de Angola,
Suplemento “Vida Cultural”, Luanda (Angola), 28 set. 2003, p. 2.
a palavra assim bem cuidada, minuciosamente costurada, experimenta, assim como esse menino que evocas, as pequenas eternidades.
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