Fernando Fiorese
Aos 40 anos, torna-se menor o medo do ridículo, a
tensão física muda em tensão lírica, enfrenta-se o espelho com mais tolerância
e generosidade, declina a mania de perfeição, aprende-se o saudável
esquecimento e o prazer das ficções na própria biografia. Aos 40 anos, sem
afetar pudor ou auto-piedade, podemos enfim reconhecer as nossas muitas ignorâncias,
os nossos pequenos crimes diários, os traumas inconfessáveis, as covardias e
temores escondidos, as incompletudes jamais preenchidas.
E mais, podemos confessar essas faltas e desvios até
para um desconhecido que nos surpreenda na fila do banco ou na sala de espera
do dentista. Trata-se mesmo de um ritual de purificação, de um acerto de contas
conosco e com o que fizemos de nossa vida, de reconhecer o homem e suas
circunstâncias. Trata-se de aceitar que, embora desejando uma epopeia, a nossa
vida não foi mais que a mistura de drama burguês e comédia, na qual as lágrimas
apenas umedeceram o lenço e os risos cessaram com o esquecimento da piada.
Ah, quantos livros não li por preguiça ou excesso de
trabalho, quantos amores adiei com receio de errar, quantas conversas
interrompi por impaciência ou pressa, quantas viagens cancelei para
resguardar-me do clima ou dos perigos da estrada, quantas palavras não disse
por medo de ser inconveniente ou demasiado amoroso, quantos silêncios guardei
para evitar a entrega ou ferir o outro, quantos idiomas não aprendi porque não
soube acomodar a língua à pronúncia estrangeira, quantos filhos mais não tive
por temer os olhos do futuro.
Ah, meu caro leitor, aos 40 anos posso enfim
confessar os horizontes que desconsiderei ou perdi porque tinha os olhos
enterrados no chão, o pânico de ser confundido com um homem comum e banal, os poemas
que escrevi para me vingar de algum desafeto, os filmes em que cochilei, o
desdém pelas frutas que desejava mas minhas mãos não alcançaram, os bailes em
que fingi uma torção no pé para não dançar, a timidez que invento para
livrar-me dos compromissos sociais e dos que considero enfadonhos, as flores
que deixei murchar no jardim ao invés de colhê-las para uma qualquer namorada.
Falando flores, falo
primavera, talvez porque desde o dia 23 de setembro esteja ela empenhada em
pronunciar suas cores, seus aromas, suas luzes contra as janelas do inverno e
transformar a ventania em brisa e antecipar as manhãs e revigorar as flores
desmanteladas pela última chuva de granizo. Falando flores, assim de modo
genérico, falo de uma das minhas mais sentidas e lamentáveis ignorâncias: tenho
pouco ou nenhum conhecimento sobre elas.
Talvez porque seja não
mais que um enamorado das palavras, posso enumerar o nome de algumas – cravo,
rosa, jacinto, tulipa, hortênsia, violeta, magnólia, lírio (e mais não sei).
Mas não esperem que as identifique num jardim ou na floricultura, que discorra
sobre suas espécies e variedades, suas cores, aromas e períodos de floração. No
entanto, desconhecê-las não me impede de apreciar, de desejar as flores, como
se aprecia e se deseja uma mulher que conhecemos apenas de nome ou de vista.
E foi este desejo e os
avanços da primavera que me levaram à floricultura, onde a memória dos lábios
da namorada se impôs num belo vaso de flores entre o vermelho e o violeta. Com
o cuidado de quem carrega nas mãos a própria primavera, atravessei a cidade
para depositar as flores aos pés de Bárbara. No entanto, o que deveria ser um
tributo aos sentidos, uma declaração de amor, um pequeno rito em prol da
instalação definitiva da primavera, não fez mais do que me defrontar com a
minha cabal ignorância.
– Que flores lindas! –
disse-me Bárbara antes de despetalar os seus lábios nos meus. – Qual o nome
delas? Tinha de outras cores? Precisam ser aguadas de quanto em quanto tempo?
Será que elas gostam de luz direta? Podem ficar na varanda? Lá bate muito sol.
E venta...
Tantas perguntas e a minha
ignorância. Confessável porque tenho 40 anos, porque sei mudá-la em riso ou em
crônica. Mas ainda assim uma falta que me torna menor, um vazio que carrego e
já não consigo nem quero esconder. (Ah, minha amada, pouco ou nada sei desta e
das demais flores, senão colher nelas o cheiro do seu corpo, a maciez da sua
pele, a cor dos seus lábios...) Poderia ter-lhe dito o que aqui vai entre
parêntesis, mas corri de volta à floricultura e, sôfrego, repeti à vendedora
cada uma das perguntas de Bárbara. E ali, sob o olhar de desprezo de uma
inteira floresta de cores e aromas, era apenas um menino boquiaberto a receber
da professora, alta e generosa, a lição da qual estive ausente, desde o nome da
flor – gloxínia – até os modos de cuidar dela. Quanto a Bárbara, bem, Bárbara
tornou-se a flor do meu esquecimento.
Publicado originalmente no Jornal de Angola,
Suplemento “Vida Cultural”, Luanda (Angola), 12 out.
2003, p. 2.
Adorei! É assim mesmo, do lado de cá (feminino) também!
ResponderExcluir"Aos 40 anos, torna-se menor o medo do ridículo, (...) Tantas perguntas e a minha ignorância. Confessável porque tenho 40 anos". Me vi nesse texto. Muito bom!
ResponderExcluirOlá Professor, parabéns pelo brilhantismo da palestra com que nos enriqueceu essa manhã de sábado (Murilo Mendes & Camus)! Parabéns pelo Blog, onde vejo, ainda em sobrevoo, o quanto nos oferece de valiosas reflexões! Inscreva-me, por favor, na imaginária lista de seus admiradores. Com abraços, Luiz Almeida.
ResponderExcluirObrigado, Luiz, por suas generosas palavras. Alegra-me saber que gostou da palestra.
ExcluirAbraços,
Fernando Fiorese
Belíssimo texto, amigo Fernando. Quantas e quantas coisas todos nós, seres humanos, deixamos passar, como também chega o tempo das grandes lições, da elevação do espírito para se manter o equilíbrio da vida, quantas falhas que nos são as oportunidades dos grande aprendizados. Belíssimo, parabéns.
ResponderExcluirMeimei Corrêa