A marca humana de questionar e de emocionar
Na biografia de minha geração, cujo período de formação se deu na
primeira metade dos anos 1980,
a descoberta da literatura brasileira contemporânea (dos
anos 1950 em diante) se confunde com o doloroso desvelamento da nossa realidade
social e política, ainda oculta naquele período sob a propaganda ideológica do país que vai pra frente, sob os efeitos
pirotécnicos e artificiosos do milagre
econômico da década de 1970, sob o slogan
“Brasil: ame-o ou deixe-o”, grafado à força nos corpos e nas mentes de quantos
ousaram rebelar-se contra a ditadura implantada pelo golpe militar de 1964.
Desde a imprensa e as artes até as
universidades, partidos, sindicatos e outras organizações civis, as vozes
públicas que teimavam em desafinar o coro dos contentes foram silenciadas ou
restringidos o volume e a amplitude de sua manifestação. Domesticados e
encobertos pelas artes de berliques e berloques do discurso oficial, os paradoxos
e paroxismos do desordenado e selvagem processo de industrialização do país
eram meticulosamente expurgados do horizonte de informação do cidadão comum.
Ainda quando este não pudesse escapar da violência, da miséria e da bárbara
injustiça social que proliferavam na realidade concreta das grandes e médias
cidades brasileiras. Mesmo o discurso mais elaborado não alcança impedir que se
manifeste a crueza e o vigor do real.
Embora os limites de seus efeitos políticos e sociais num país de analfabetos
e frágil tradição de leitura – e talvez por isto um mínimo menos vigiada pela
censura –, a literatura tornou-se uma das vias privilegiadas de acesso da minha
geração para o conhecimento do embate que, na cena urbano-industrial
desencadeada pelo desenvolvimentismo da ditadura, travavam as forças da
barbárie e da civilização. Dentre muitos outros, escritores como Rubem Fonseca,
João Antônio, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Ignácio de Loyola Brandão, Antônio
Torres, João Ubaldo Ribeiro e Sérgio Sant'Anna trataram de traduzir “o tempo
presente, os homens presentes, a vida presente”, desnudando as grandes questões
do Brasil contemporâneo. Das populações periféricas e marginalizadas às elites
econômicas, com privilégio da classe média urbana, produziram eles um retrato das
misérias, contradições e perplexidades que nos acossavam na segunda metade do
século XX.
Elaborada de forma aleatória e com apenas alguns poucos prosadores que se
encontram em faixa etária próxima, à relação anterior torna-se imprescindível
ajuntar o nome de Moacyr Scliar, morto no último dia 27 de fevereiro, às
vésperas de completar 74 anos. A reunião de narrativas curtas intitulada A balada do falso Messias (1976), não
por acaso publicada na coleção “Nosso Tempo” da Editora Ática, foi o título
que, ainda em princípios dos anos 1980, me introduziu à obra deste escritor
gaúcho. Estavam ali os arquétipos judaicos e bíblicos aclimatados à realidade
brasileira (conto-título), a dor e o vazio existenciais do homem degradado pelo
poder do capital (“Agenda do executivo Jorge T. Flacks para o dia do Juízo Final”,
“Comendo papel”), o humor refinado e ferino a desvelar e corroer as menores
idiossincrasias da classe média (“Escalpe”, “Ofertas da Casa Dalila”), o
questionamento da função social do escritor e da literatura na sociedade
contemporânea (“Testemunho”, “Os contistas”). Ao longo dos últimos 30 anos e ao
acaso das leituras, enfileiraram-se na estante e na memória outros tantos
romances e coletâneas de contos de Scliar – O
exército de um homem só (1973), Histórias
da terra trêmula (1976), Os deuses de
Raquel (1975), A guerra no Bom Fim
(1972), O carnaval dos animais
(1968), O anão no televisor (1979), O ciclo das águas (1975) –, sem jamais
arrrefecer o alumbramento deste leitor diante de uma escrita que, através de
narrativas escorreitas e de fácil apreensão, traz a marca humana de questionar
e de emocionar, das lágrimas ao riso.
Publicado no jornal
Tribuna de Minas,
Juiz de Fora, 06 mar. 2011,
por ocasião da morte de Moacyr Scliar (1937-2011)
Sempre bom relembrar Moacyr Scliar, um dos grandes nomes da nossa literatura. A "marca humana" ficou presente em sua obra através do registro dos problemas, preconceitos e características dos judeus q vieram p/ o Brasil assim como pelos problemas da saúde pública q ele tão bem conheceu pelo exercício da medicina.
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