Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro
Desmontando a família
Fernando Fiorese
Os muitos modos do riso mais do que aliviam a tensão
muscular do rosto cotidiano, apático ou trágico. A convulsão da nossa máscara
social diária pelo riso resulta na percepção do modus operandi da máquina lógica que, lenta e inexoravelmente, nos
torna avessos ao prazer do acaso que governa a realidade. Seja o riso comedido
ou a gargalhada às escâncaras, trata-se sempre do desmonte da ordem
tranquilizadora das idéias e dos valores, dos comportamentos e das crenças. Daí
talvez o caráter um tanto sacrílego da comédia: um insulto aos deuses
instituídos, um desafio aos homens respeitáveis e bem-postos.
Tais breves considerações acerca do riso, rascunhadas
por um espectador comum, embora privilegiado e cúmplice, ensejam apenas chamar
a atenção do leitor para uma das muitas características da extensa obra do
ator, diretor e dramaturgo José Luiz Ribeiro, cuja trajetória à frente do
Centro de Estudos Teatrais – Grupo Divulgação se confunde com a história de
resistência e pioneirismo da cultura e da arte em Juiz de Fora nas últimas três
ou quatro décadas. Refiro-me à obra de comediógrafo do autor juizforano, que
encontra em Botanágua, sua montagem
mais recente, um exemplo acabado da estratégia especular (no sentido verbal e
substantivo) utilizada por José Luiz Ribeiro para desmontar a realidade
brasileira cotidiana.
Ao modo da melhor tradição cômica, o autor elege a
cena doméstica – o universo minúsculo de uma família classe média baixa – como
espelho no qual abismar os espectadores para especularmos uma realidade que, por
demasiado maiúscula e complexa, muitas vezes nos submete e paralisa.
Assim, na superfície deste espelho algo banal e
imediatamente reconhecível nos defrontamos com o desmonte de uma família
tipicamente juizforana e brasileira, a minha, a sua e – pasmem! – a do próprio
autor e diretor. As referências pessoais e locais não devem ser entendidas, no
entanto, no sentido do provinciano ou do ocasional. São antes estratégias
utilizadas para facilitar o imediato estabelecimento do pacto de representação
e, principalmente, para engendrar as gags
que desmantelam em riso o nosso rosto pequeno-burguês, enquanto
acompanhamos o desmoronamento da família em cena.
O local e o doméstico são apenas sintomas dos apagões ético, social, político, econômico
e cultural que acossam a realidade brasileira contemporânea. Desmontando a
família de todos e de cada um, Botanágua nos
desafia a ultrapassar as iluminações midiáticas e o aço do neoliberalismo para,
através do espelho e não sem dor, nos defrontarmos com a face trágica do Brasil
atual, urdida em 500 anos de injustiça e corrupção. Num híbrido de Mário de
Andrade e Charles Chaplin, José Luiz Ribeiro atualiza “os males do Brasil são”,
sem nunca perder o lirismo e a ternura em relação àqueles que sabem a festa e o
riso, ainda que à beira das trevas.
Como Era sempre
1° de abril e O príncipe rufião,
apenas para citar dois exemplos, Botanágua
opera no terreno indecidível, na região difícil – e por isso a poucos
dramaturgos franqueada – entre a alegria e a dor, entre o cômico e o trágico,
entre o lírico e o prosaico, entre os vivas e os pesares – afinal, esta a cena
brasileira. E José Luiz Ribeiro sabe vencer artifícios economicistas e logros
midiáticos para trazer ao proscênio e colocar sob as luzes que ainda nos restam
as verdades intestinas e as grandezas que, embora inauditas ou subestimadas,
nos fazem ser o povo brasileiro.
Artigo publicado na revista-programa
do espetáculo teatral Botanágua,
de José Luiz Ribeiro.
Montagem do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação,
1º
semestre de 2001.
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