OUTRO SOL (POEMAS, 2004), DE JÚLIO POLIDORO |
Fragmentos desentranhados da lírica de Júlio Polidoro
ou
Circunvoluções em torno de Outro sol
Fernando Fiorese
1a
Os
teóricos devem à literatura, salvo engano, um estudo minucioso acerca das
circunstâncias que determinam se torne inédito ou bissexto um escritor, um poeta.
Tal estudo muito contribuiria para a compreensão do desejo de Kafka, assinalado
por Blanchot, “de desaparecer, discretamente, como um enigma que quer escapar
do olhar”. Talvez pudesse explicar também o contraponto entre o prolífico
prosador Pedro e o parcimonioso poeta Nava. Para este estudo, não tenho mais
que uma epígrafe extraída dos fragmentos de Heráclito:
Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que
nunca se deita?
1b
Mesmo quando se alcança a higiene da
metafísica cristã, a obra dos deuses resta como paradigma e horizonte das
operações humanas. E o livro, lugar criado pela palavra, permanece um ersatz menor do Livro, brutta
copia do Lógos originário, caricatura do cosmos engendrado
por mãos imortais. E se a obra se dá em dispersão, alheia a qualquer projeto ou
cálculo, uma vez mais e ainda se impõe o pensar do Skoitenós grego:
De coisas lançadas ao acaso,
o arranjo mais belo, o cosmos.
2
Em
muitos sentidos, os fragmentos citados se prestam ao avizinhar-se da obra de
Júlio Polidoro, coligida neste volume. Antes de tudo, pelo aspecto fragmentário
e casual com que o poeta a foi construindo, sempre tensionada entre as
tentações do inédito e a dispersão do bissexto. Como dormisse longos sonos,
como se fizesse de e nos lapsos, como perseguisse um mapa secreto ou aleatório,
como indecidível entre a reta e a curva.
2a
Como dormisse longos sonos, sem jamais se deitar, a poesia de Júlio
Polidoro exsurge ao acaso. Afora os textos dispersos em jornais, revistas,
antologias e coletâneas, Treze poemas essenciais (1979), Pequenos
assaltos (1990) e Orla dos signos (2001) são as marcas visíveis
desta travessia pontuada de lacunas temporais demasiado extensas. E ainda
quando o poeta se empenha em ordenar a dispersão – como em Orla dos signos,
no qual publica na íntegra os livros anteriores e antologia dois outros
inéditos –, resiste a vis fragmentária e casual da obra em operação. Talvez
porque nada possa o autor contra as linhas de força que aciona e o enredam.
2b
Como se fizesse de e nos lapsos, desta obra pouco nos dizem as datas com que
o poeta rubrica cada um dos oito títulos aqui reunidos, inéditos em sua
maioria. Mas, se não realiza o fantasmático desejo de ordenação – mesmo porque
realizá-lo seria trair o acaso como motor da sua escrita –, Júlio Polidoro nos
oferece em Outro sol o lugar único que o verter múltiplo desta lírica
tanto buscou e merecia.
2c
Como perseguisse um mapa secreto ou aleatório: assim o leitor deste livro
de livros, no qual proliferam poemas sem título ou apenas numerados, sonetos e
formas brevíssimas, a assinalar o jogo em que o poeta o dispõe e propõe. Pois
esta reunião é um puzzle que se vai armando – parece que lhe faltam
peças, mas estas apenas se escondem entre o cúmulo de fragmentos, se
multiplicam como num mosaico de espelhos.
2d
Como indecidível entre a reta e a curva, pode-se ler Outro sol,
pois algumas seções ou livros inteiros se armam como fossem um único e mesmo
poema, costurado pelo desdobrar das pequenas diferenças de temas, imagens e
palavras; enquanto outras partes e títulos mal se alinhavam – e então sobram
pontas nestes fragmentos crescidos uns de costas para os outros. E assim, entre
o afeto e o desacordo, a lírica de Júlio Polidoro ora se entrega, comum e
amorosa, ora se recusa ao diálogo, obscura, inamistosa.
3
Tal como entre os pensadores originários, aqui o mistério se diz músculo
e mística, número e desmesura, alumbramento e medo. Tal como entre os
fragmentos daqueles, em Outro sol não há modo de demarcar núcleos
temáticos, de rubricar traços de estilo, de assinalar uma progressão poética,
de disciplinar a palavra. Mas, para esta reunião, convergem os mesmos elementos
primevos (terra, água, fogo, ar), os mesmos deuses, as mesmas imagens
arquetípicas, as mesmas questões inelutáveis que, desde sempre, alimentam o thaumázem
do poeta e do pensador. E não se trata de limite ou restrição, pois mesmo
“a história universal”, nos diz Borges, “talvez seja a história da diferente
entonação de algumas metáforas”. Ao leitor, o tom e o tonos que Júlio Polidoro
empresta a essas metáforas.
Juiz de Fora, véspera de primavera, 2004
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