Fernando Fiorese
Nos
anos 70, Edgar Morin afirmava que “a cultura de massa desagrega os valores
gerontocráticos, acentua a desvalorização da velhice, dá forma à promoção dos
valores juvenis, assimila uma parte das experiências adolescentes”. No entanto,
ressalta o pensador francês, a cristalização dos valores de contestação também
rubrica a adolescência: “... repugnância ou recusa pelas relações hipócritas e
convencionais, pelos tabus, recusa extremada do mundo”.
Assim,
pode-se dizer que, entre 1950 e 1970,
a cultura de massa empenhou-se por harmonizar os desejos
dissonantes da juventude sob as formas estandardizadas dos mass media, com o objetivo de “enfraquecer as arestas e atrofiar as
virulências”. No entanto, os valores adolescentes demonstraram-se por demais
antagônicos e contestadores, como atestaram as rebeliões estudantis de fins da
década de 1960. As tentativas de controlar e padronizar os paradoxos e os
paroxismos juvenis determinaram apenas a exacerbação de manifestações
conturbadas e avessas às necessidades do ciclo inelutável de produção e consumo.
A
juventude, então, denunciava com vigor e virulência os arquétipos empregados
pela indústria cultural na produção dos bens simbólicos da sociedade de consumo:
amor, felicidade, valores privados, individualismo etc. E também as estratégias
de elisão da morte (representada pelo processo de envelhecimento) e de
afirmação do tempo histórico linear, do presente contínuo, sobre o qual se
constrói a ilusão de uma futura idade de abundância e liberdade.
Não
por acaso, nas palavras do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, “o descrédito
do futuro e de seus paraísos é geral. Não é de se estranhar: em nome da
edificação do futuro, a metade do planeta cobriu-se de campos de trabalhos
forçados”. As rebeliões juvenis denunciavam o ocaso dos projetos de eternidade
e de futuro, disseminados, respectivamente, pela teologia cristã ocidental e
pela teoria marxista ortodoxa. Ambas promoveram a desvalorização do corpo e da
imaginação como fontes de prazer para torná-los força de trabalho. “Em nome do
futuro”, acrescenta Paz, “completou-se a censura do corpo com a mutilação dos
poderes poéticos do homem.”
Nas
rebeliões estudantis, alia-se a valorização do corpo e do imaginário à recusa
dos grandes discursos ideológicos no intuito de abalar as colunas do tempo
linear e do presente contínuo que nos oprimem em benefício da construção de um
futuro utópico. A juventude, ainda segundo Paz, espera “instintiva e
confusamente que a destruição deste presente provoque o aparecimento do outro presente e seus valores corporais,
intuitivos e mágicos. Sempre a procura de outro
tempo, o verdadeiro”.
Não
tardaria a reação da cultura de massa diante da rebeldia incontrolável e inesgotável
da juventude. Necessário forjar nos vazios da ideologia estereótipos mais afeitos
à fórmula do consumo passivo individual. Neste sentido, elege-se a infância
como lugar privilegiado para o sequestro dos temas que, testados no decorrer da
década de 1980, sobredeterminaram os produtos culturais de fins do século XX.
Mas ressalte-se que não se trata da infância ela-mesma, com seus valores ativos
de desvelamento do mundo, encontro com os materiais, afirmação dos sentidos,
exercício dos instintos, atividade ininterrupta, espanto e aventura.
Ao
contrário, nos últimos 20 anos nos deparamos com uma infantilização dos produtos
culturais (programas televisivos, música, moda etc.) engendrada a partir do
desfibramento e da simulação das características da infância: deslumbramento
diante das imagens da hiper-realidade criada pela tecnologia, distanciamento
dos materiais, negação dos demais sentidos em nome da hipertrofia do olhar,
apatia dos instintos e passividade muscular. De todos os modos, acentua-se a
supressão da realidade em benefício do signo, promovendo o rompimento das
relações do homem com o concreto e o humano.
Quer
nos parecer que o segundo batismo da
infância pela tecnocultura representa mais uma estratégia da sociedade de
consumo no sentido da elisão do ser-para-a-morte.
Ainda quando o processo de infantilização da cultura, pela perigosa aproximação
entre princípio e fim, remeta aos signos da morte, trata-se não do morrer, mas do regressar ao útero
materno, onde estamos a salvo da brutalidade do mundo contemporâneo. Imóveis e
protegidos no regaço da mãe-media,
podemos enfim habitar um lugar alheio à morte e à violência.
Os
programas infantis (e não apenas eles) veiculados pela televisão configuram um
convite diário à vivência de um “mundo infantil” alienado da realidade concreta,
pois experimentado tão-somente no espaço-tempo virtual. E assim, crianças,
jovens e adultos substituem o desejo da “eterna juventude” de décadas anteriores pelo sonho da “infância eterna”, num
processo de regressão de tal forma acelerado que, talvez, no decorrer do século
XXI nos conduza à fetalização dos
produtos culturais. Ou seja, à elaboração pela indústria cultural de bens
materiais e imaginários que tenham como paradigma as necessidades e desejos do
ser humano em estado intra-uterino.
De qualquer modo, até então avessa à linha de
produção e olvidada pelas estratégias de consumo, no decorrer das últimas
décadas do século XX a infância tornou-se protagonista da cultura de massa,
contribuindo não apenas com a absorção de produtos os mais diversos, mas também
com sua força de trabalho.
Publicado no jornal Tribuna de Minas,
Juiz de Fora (MG), em 19 nov. 1989
Muito bacana sua reflexão Fernando! O detalhe do texto ter sido publicado em 1989 não muda em nada, é claro, sua atualidade. Achei curioso você falar em "elisão do ser-para-a-morte" (com todos esses hífens). A referência ao conceito heideggeriano me veio de imediato. Se ela foi intencional, o que mais exatamente o senhor queria dizer? Que a sociedade de consumo: tenta de forma estratégica, suprimir a certeza da finitude humana pela instauração de uma "constante infância" assim como impedir as pessoas de se angustiarem (visto que a angústia é a tonalidade afetiva que de assalto coloca a pessoa diante de sua condição de ser-para-a-morte)? Bom, essa é mais uma curiosidade minha sobre a reflexão do senhor do que propriamente um comentário.
ResponderExcluirAbraço.
Tarcísio L. Louzada
Caríssimo Tarcísio,
ExcluirAntes de tudo, quero agradecer a sua leitura e o comentário. Você acertou na mosca. De fato, se não me falha a memória, na época em que escrevi este texto estava às voltas com a leitura de algumas obras de Heidegger. Portanto, a sua inferência está absolutamente correta. Grande abraço, Fernando.
Texto de 1989 e tão atual. Vc retrata mto bem a situação em q vivemos, com o homem parecendo desconectado do mundo real e incapaz de reflexão.
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