Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro
O último portal
Fernando Fiorese
A
peça O último portal, montagem do
Grupo Divulgação estreada no último dia 19 de outubro, poderia ter como
epígrafe este verso de Virgílio (Eneida
II, 369): “Plurima mortis imago” (“A
morte em múltiplas formas”). Ao realizar uma versão livre do cult-movie do cineasta sueco Ingmar
Bergman, O sétimo selo (Det Sjunde Inseglet, 1956), o
dramaturgo, ator e diretor José Luiz Ribeiro nos oferece um resumo vigoroso das
questões que mobilizam o fim do século XX.
A
despeito da cronologia, um século não tem data para terminar. Por vezes, penetra
com suas características a idade subsequente, como o século XIX prolongou-se século XX adentro para terminar apenas por volta da Primeira Guerra (1914-1918). Também
o nosso século, cujo fim tem merecido tantas comemorações, agoniza mas não
morre. E assim foi ao longo dos últimos 100 anos, a ponto de podermos
perguntar: de quantas mortes um século precisa para, enfim, morrer?
Os
paradoxos deste tempo terminal e interminável, as aporias desta idade que
repetidas vezes exsurge de seus próprios escombros, as muitas danças da morte
no século XX – eis algumas das questões que O
último portal nos propõe sob a rubrica farsesca do medievo. Numa época em
que mesmo os acontecimentos mais violentos e degradantes, mediatizados pelas
tecnologias da imagem, adquirem uma aura de glamour
e assepsia, a peça de José Luiz Ribeiro funciona como a contracena desta era de
belas imagens, ainda quando registraram o terror nazi-fascista, a rosa de
Hiroshima, as vítimas das ditaduras, os miseráveis do Terceiro Mundo...
Avessa
ao cosmético e ao ilusionismo realista, a cena crua de O último portal nos coloca diante do espelho transtornado deste
século que, dentre outras muitas tragédias, produziu a tradução concreta da
letra do Apocalipse. Conforme a
palavra latina imago, a imagem não é
aqui mais que uma profusão de espectros, a legião de mortos do século. Tendo
como guia a Enviada, na interpretação precisa de Márcia Falabella, os personagens
atravessam a selva selvaggia do tempo
presente rumo ao Julgamento Final, quando então desvelam-se os muitos passos da
dança secular da Morte.
O
pendor alegórico do dramaturgo faz de cada personagem um arquétipo das potências
destrutivas da nossa época. A peste, o espírito bélico (Antonius, o cavaleiro/Leandro
Boscato), o bovarismo (Lisa, a mulher do açougueiro/Marise Mendes), a intolerância
(inquisidores e aldeãs) e a subserviência ao poder (João, o escudeiro/José Luiz
Ribeiro, Ator/Júlio Andrade, Míriam, a mulher de Antonius/Rinara Souza) são
apenas algumas das máscaras do extenso repertório que tornaram a Morte a figura
dominante deste século que escolheu a guerra como cenário.
Trata-se
de uma peça melancólica, como o século. Embora a figura de Maria (Cristina
Braga), símbolo de esperança, na montagem do Grupo Divulgação o tom farsesco
não consegue suavizar a máscara trágica do nosso tempo, quando já não é mais
possível encontrar no Apocalipse a
letra do Gênesis.
Juiz de
Fora, 19 de outubro de 2000
belo blogue, voltarei mais vezes.
ResponderExcluir