segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Escrever à distância



Fernando Fiorese

Há os que usam a palavra para excomungar o outro e o mundo, submetê-los, colocá-los na distância medida e adequada à vigilância, ao controle. Trata-se de fazer dela não mais que uma arma, um instrumento a serviço do poder político, econômico, religioso, ideológico ou de classe. Também há aqueles que, com a irresponsabilidade dos maus pornógrafos ou dos falsos moralistas, tomam a palavra para conduzi-la à ruína, gastá-la em frivolidades, até que nada reste do sentido, senão a linha interminável e enfadonha do tagarela. E há ainda, talvez na fronteira entre os dois tipos anteriores, os que encontram na palavra um artifício para encobrir a realidade, mudá-la em algo mais próximo dos seus devaneios, construir um mundo conforme os seus desejos. São estes os mentirosos patológicos e os delirantes contumazes.
Em seus numerosos desdobramentos e variantes, estes usos da palavra participam dos nossos muitos modos de escrever. E não creio que qualquer um de nós esteja livre de suas armadilhas, exceto quando, cientes da miséria e da grandeza da linguagem, nos empenhamos em escrever com o cuidado de quem afina um instrumento, de quem prepara a voz para participar do canto coral da humanidade. Tais considerações assaltam este cronista aprendiz quando, diante do computador, procuro acolher o convite que o Jornal de Angola me dirige através de meu ex-aluno Augusto Alfredo, atual editor de Economia do único diário angolano. E me assaltam não na forma retilínea, amena e prosaica com que procurei traduzi-las nas linhas anteriores, mas ao modo de questões que amiúde interrompem a escrita, transtornam o saber sabido e, ao mesmo tempo, acionam o desejo de fazer da palavra o lugar do encontro humano.
Quem poderá falar a palavra capaz de transpor as diferenças e encontrar as identidades entre povos tão distantes e tão próximos quanto o angolano e o brasileiro? O que pode dizer este estrangeiro àqueles que conheço apenas por livros, jornais, revistas ou, quando muito, pelas palavras vivas de outros que no Brasil foram também estrangeiros? Como escrever para um leitor que está separado de mim não apenas por um oceano físico, mas também histórico e cultural? Quando calar ou aumentar o volume da voz? Quando amenizar o verbo ou usar de palavras ásperas? Quando investir na lógica dos argumentos ou apelar para a poesia dos sentidos se tão pouco sei das paisagens e dos aromas de Angola, do coração e da mente do leitor a que me dirijo? Onde colocar o desejo de escrever próximo, de falar cara-a-cara, de me tornar íntimo e confidente quando qualquer uma destas palavras, tão familiares para mim, pode ser um completo mistério para os amigos que procuro na distância? Por que, afinal, arriscar-me neste dizer em prosa o que vai pelos dentros de um homem, como pudesse ultrapassar as fronteiras e tocar o ombro do leitor para fazê-lo ver o que nos reúne?
São estas as questões que movimentam meus dedos sobre o teclado. Não tenho respostas, nem espero obtê-las. Escrevo apenas porque elas me impulsionam, como um dia outras questões fizeram com o menino (que perdi e aqui recupero) diante das primeiras letras do alfabeto. Entre pasmo e amedrontado, tateando as curvas da escrita e os abismos do significado, também aquele menino nada sabia – e pouco aprendeu depois disso – do mundo que pretendia mudar em palavras. E se o homem maduro sabe que a palavra não muda o mundo, o menino teima enquanto escrevo. Está outra vez no quarto da casa paterna, a bordar algumas palavras porque as quer mais belas, a rasurar outras que acredita ameaçadoras ou perversas, a apequenar umas tantas por julgá-las demasiado altas para seus olhos.
Este o menino que em mim escreve, fechado em quatro paredes e tendo as palavras como janelas. Ele não cessa, ainda quando o verbo amedronta ou queima o papel. Ele não cansa de desaprender a gramática e a semântica apenas para, uma vez mais, ter o espanto da descoberta. Ainda posso vê-lo deitado de bruços, lápis em punho, a escavar o caderno de caligrafia como quem desmonta um brinquedo e com suas peças faz muitos outros. Porque a palavra não é mais que isso, um brinquedo que o acidente conserta e assim se oferece ao leitor para outros desmontes. E logo que surge uma qualquer atração, seja o corpo da vizinha, um inseto estrangeiro, um velocípede vermelho ou o reclame do circo, o menino interrompe o lápis e procura na matéria do mundo o que as palavras apenas anunciam. Mas trata-se de uma fuga breve, embora intensa, porque o menino confia que na palavra possa reunir a vizinha, o inseto, o velocípede, o circo – e assim experimentar as suas pequenas eternidades. E se ele empresta alguma coisa a este que agora escreve, perdidas as ilusões e a inocência, não é outra coisa senão o saber que a palavra nos abre a realidade, nos coloca à procura das coisas, nos permite a comunhão com o outro, ainda quando se tem de escrever à distância de um oceano.

Publicado originalmente no Jornal de Angola,
Suplemento “Vida Cultural”, Luanda (Angola), 28 set. 2003, p. 2.

Um comentário:

  1. a palavra assim bem cuidada, minuciosamente costurada, experimenta, assim como esse menino que evocas, as pequenas eternidades.

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