sexta-feira, 12 de junho de 2015

DO CRONISTA ENQUANTO ESPIÃO


(ou Nove considerações de todo inúteis para ler este livro)

Prefácio do livro 
Rubem Braga com a FEB na Itália:
crônicas-reportagens, literatura da notícia,
de José Geraldo Batista
(Curitiba: Prismas, 2014)

José Geraldo Batista na Casa dos Braga
(Cachoeiro do Itapemirim  ES) 

Fernando Fiorese

Nove

Todo prefácio é inútil. E ainda que se lhe atribuam numerosas funções – como têm feito desde Aristóteles (Téchne retoriké, circa 350-335 a.C.) até Gérard Genette (Seuils, 1987) –, prefácio só funciona quando inútil e anterior. O prae do termo em latim (praefatĭo, -ōnis) e seus similares ante e pro – presentes nos sinônimos anteâmbulo, antelóquio, apresentação, preâmbulo, prefação, preliminar, prelúdio, proêmio, prolegômenos, prólogo, prolusão – referem tal anterioridade, e talvez encontremos nesta o modo como e por que funciona o prefácio na sua brutal e inelutável inutilidade. Assim poderia dar conta da questão que me espreita e aciona – e por isto endereço aos eventuais leitores: por que me pedem e por que escrevo um prefácio, mesmo sabendo tratar-se de um inutensílio textual?
No caso deste prefácio, devo o pedido à generosidade do autor, José Geraldo Batista, decerto uma retribuição a maior pela orientação da tese de doutoramento que ora muda em livro. E se o escrevo não é apenas para estar à altura do convite, mas porque escrevê-lo é a única resposta que posso dar à questão antes referida, uma resposta decerto falha e transitória – melhor, no entanto, que a negativa ou o silêncio. Se o escrevo é porque confio que, no seu caráter inútil e anterior, o prefácio empresta ao leitor um lugar incomum, posto que não precisa existir. Mas quando existe figura uma zona de fronteira onde descansar o corpo das bagagens e reaver as forças para a viagem que importa.
Tal afiança Umberto Eco em Sei passeggiate nei boschi narrativi (1994), “todo texto é uma máquina preguiçosa que pede ao leitor para fazer uma parte do seu próprio trabalho”. Assim, todo prefácio não é mais que a soleira desta casa de máquinas paradas, sempre à espera da energia laboriosa do leitor para entrar em operação. Mesmo inútil e anterior ao tour de force da leitura, o prefácio se dispõe como sombra da obra e, deste modo, oferece ao leitor o tempo preciso e o clima ameno para ajuntar as forças necessárias à ignição do texto-máquina.

Oito

A zona de fronteira é também o lugar da crônica no concerto dos gêneros da escrita. Com parca bagagem, muitos passaportes e corpo indecidível, a crônica transita do registro dos acontecimentos cotidianos até o poema em prosa, com visitações à narrativa curta, ao humor, à crítica (política, de costumes, dentre outras), à reflexão filosófica, à memorialística, ao testemunho etc. Entre a objetividade jornalística e as potências do imaginário, a crônica é bailarina na corda bamba entre o fato e a ficção, sempre zombando da escolástica adaequatio rei et intelectus, sempre reenviando a imaginação à realidade. Ainda que seja uma pausa na proliferação desenfreada de informações, a crônica não refresca. Ao contrário, transtorna tanto os manuais de literatura quanto a fácil dicotomia de verdade e mentira.

Sete

Contrabandistas, exilados, desertores, prostitutas, alienados, traficantes, andarilhos, fugitivos, soldados e espiões – sem qualquer julgamento moral ou analogias indevidas – são habitantes típicos das zonas de fronteira. De qual destes tipos mais se aproximaria a figura do cronista? Talvez do contrabandista, carregando cargas ilícitas do jornalismo para a literatura (e vice-versa). Talvez do exilado que, abandonando o território prosaico da imprensa, não quer mais que um visto provisório para o país da poesia. Talvez do alienado, à deriva na terceira margem do rio da escrita... Decerto do espião, a cujas características específicas assim refere José Castello: “O cronista é um agente duplo: trabalha ao mesmo tempo para os dois lados, e nunca se pode dizer, com segurança, de que lado ele está. Na verdade, ele não está em nenhuma das duas posições, nem da verdade nem na da imaginação – mas está ‘entre’ elas” (As feridas de um leitor, 2012).

Seis

A guerra será sempre uma zona de fronteira onde abundam os tipos citados e muitos outros. Tanto que, na crônica “Véspera de S. João no Recife”, assombrado pela sua primeira experiência como correspondente de guerra durante a Revolução Constitucionalista de 1932, Rubem Braga (1913-1990) reitera esta analogia: “... eu era um espião da vida, no meio da morte. Eu ainda não tinha vinte anos, não tinha mais nenhum deus para me entender depois da morte, não tomava banho há um mês, estava sujo e magro, meu lápis de repórter quebrou a ponta. Havia esse mesmo crepitar de fogos pela vasta noite, e, junto dos acantonamentos, as fogueiras se acendiam para os soldados gelados. Meu papel de repórter estava sujo da terra das trincheiras, eu já não escrevia nada. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer sorrir, eu não reconhecia aliados nem inimigos; apenas via homens pobres se matando para bem dos homens ricos; apenas via o Brasil se matando com armas estrangeiras” (O conde e o passarinho, 1936). 

Cinco

O vocábulo “espião” alcança o português através do italiano spione, derivado de spia, substantivação do verbo spiare. Para encurtar o percurso etimológico deste termo, que passa pelo francês antigo espier (a partir do frâncico ou do proto-germânico spëhon), diga-se logo da sua origem latina no verbo specǐo, -ěre (avistar, ver, olhar), provavelmente advindo do grego skopeýo, com inversão da raiz. Fato é que muito do étimo foi mantido nas línguas ocidentais – spion (alemão), espia (castelhano), espion (francês), spy (inglês) etc. –, ainda que o trabalho das passagens entre tantos idiomas tenha rasurado, abreviado ou silenciado alguns dos sentidos originários do verbo grego (skopeýo): observar de longe, avistar; mirar, ter por fim, aspirar a; ter cuidado, velar por, preocupar-se com; olhar, examinar, observar, explorar, espiar; refletir, julgar, investigar; precaver-se; perguntar, informar-se. Confio que, a partir deste elenco de significados, o leitor saberá desdobrar as possíveis correspondências entre as tarefas do cronista e do espião, em particular no cenário de guerra desvelado pela obra estudada por José Geraldo Batista neste Rubem Braga com a FEB na Itália: crônicas-reportagens, literatura da notícia.

Quatro

No teatro de operações da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), outra vez o repórter Rubem Braga se faz “espião da vida, no meio da morte”, contrabandista da civilização nos campos italianos da barbárie, exilado da paz à cata do lírico que possa existir na mais bruta e cabal tragédia. Para tanto, cumpre ao correspondente de guerra inventar um modo de ser cronista nesta zona de fronteira entre o “mal radical” do totalitarismo (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, 1990) e o humano, demasiado humano dos pracinhas brasileiros: “Minha ambição, quando fui escolhido para correspondente de guerra do Diário Carioca, era fazer uma história da campanha. Está visto que eu não pretendia fazer uma história que interessasse aos técnicos militares, mas uma narrativa popular, honesta e simples, da vida e dos feitos de nossos homens na Itália. Uma espécie de cronicão da FEB, à boa moda portuguesa antiga” (Com a FEB na Itália, 1945).

Três

O tal “cronicão” exigirá de Braga a traição elegante tanto do jornalismo quanto da literatura. Por um lado, declina dos princípios da objetividade, imparcialidade e universalidade para registrar a campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália como quem escreve a história imediata vista de baixo, ou seja, pelos olhos desarmados dos pracinhas, aos quais o lápis e o papel do repórter dão voz e vez, identificando-os pelo nome, cidade de origem e outros pormenores. Ainda que redigidas sob a vigilância da censura estado-novista, as crônicas de Com a FEB na Itália não descuram das subjetividades transtornadas pela guerra, da crítica aos totalitarismos de qualquer natureza ou latitude, do redobrado interesse pelos personagens e acontecimentos mais banais e comezinhos. Por outro lado, o devaneio e o lirismo que, por vezes, atravessam estas crônicas são apenas um breve e necessário recreio para, algumas linhas adiante, reencontrar e suportar a verdade chã da guerra, selva selvaggia de morte e miséria.

Dois

Considerado “comunista” pela ditadura Vargas, um espião da liberdade nos intestinos do totalitarismo, Braga não dispunha de franquia telegráfica para o envio de suas crônicas-reportagens, as quais alcançavam o Rio de Janeiro via mala postal aérea, às vezes com lapso de tempo superior a um mês. Tal restrição lhe permitia circular sem afobação por todas as posições do campo de batalha, entabular longas conversas com todo tipo de gente, incluindo expedicionários de qualquer patente e cidadãos italianos, demorar-se na observação minuciosa da paisagem natural e humana. Ou seja, o cronista podia realizar todos os sentidos originários do verbo grego skopeýo, podia ser o espião que se propôs, armado tão somente de imaginação lírica e fúria jornalística.

Um

Este texto foi apenas uma contagem regressiva. Cumpre a você, leitor, acionar a máquina que José Geraldo Batista engenhou sem qualquer preguiça nas páginas que seguem.

Zero

Juiz de Fora, junho de 2014.

 

Post scriptum:

Rubem Braga com a FEB na Itália: crônicas-reportagens, literatura da notícia, de José Geraldo Batista, pode ser adquirido no site da Editora Prismas: http://editoraprismas.com/loja/product_info.php?products_id=334&osCsid=cb48320d3473ec19b70a858ef21d4998.

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