quinta-feira, 16 de agosto de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 03]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

F. BRACHER JR. (FREDERICO BRACHER JÚNIOR), RUA HALFELD

Compartilhar a cidade

Fernando Fiorese

A Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão, atual Reitora da UFJF, disse-me certa vez que Juiz de Fora tem uma luz estranha. Desde então, compartilho com ela desta cidade iluminada por uma incógnita.
O poeta Iacyr Anderson Freitas contou-me da visão de um guarda na Praça Antônio Carlos, posteriormente materializada num belo poema. Desde então, compartilho com ele deste lugar e deste personagem.
O pintor Dnar Rocha, mesmo sem o saber e desconhecendo quem seja este cronista, revelou-me cores e paisagens desconhecidas de Juiz de Fora. Desde então, compartilho com ele desta cidade plástica.
No livro A idade do serrote, Murilo Mendes transforma em prosa poética os personagens e acontecimentos de sua Ítaca perdida. Desde então, compartilho com ele desta cidade cercada de mulheres e pianos por todos os lados.
Algumas das peças escritas por José Luiz Ribeiro, diretor do Grupo de Teatro Divulgação, fizeram-me enxergar o passado e o presente de Juiz de Fora com a ironia e o lirismo que caracterizam a obra do dramaturgo. Desde então, compartilho com ele dos bastidores e do proscênio desta cidade.
Desde que nos conhecemos, minha mulher desvelou-me a sua meninice entre os bondes e as personagens do bairro São Mateus. Desde então, compartilho com ela da infância idílica que não tive em Juiz de Fora.
O poeta Edimilson de Almeida Pereira descreveu-me recentemente um crepúsculo visto de dentro de um ônibus na margem esquerda do Paraibuna. Desde então, compartilho com ele desta fugidia cena urbana.
As memórias de Pedro Nava nos oferecem um inventário das misérias e das grandezas de Juiz de Fora nas primeiras décadas deste século. Desde então, compartilho com ele deste Baú de ossos.
As obras dos artistas plásticos Stheling e Gérson Guedes me mostraram ângulos inauditos da arquitetura de Juiz de Fora. Desde então, compartilho com eles das texturas e das luzes desta cidade sonhado com pincéis.
Outros tantos foram pródigos em textos e imagens. Compartilho com eles da cidade que houve e não ouve a sua própria história, empenhada que está por inteiro no processo de desconstrução e construção. Les cités vont vite – e com elas as referências que nos permitem habitá-las, descobrindo numa qualquer fachada não o fóssil do passado, mas o animal vivo do nosso imaginário. O que fora urdido por nossas próprias mãos, como espelho, torna-se labirinto, Babel de todos e de ninguém.
Não quero a cidade imobilizada como museu a céu aberto. Não quero a cidade a cultuar cadáveres e naturezas mortas. Quero a cidade das passagens que as galerias do centro concretizam. Passagens onde possa transitar entre a geometria bruta dos edifícios de estética duvidosa e as curvas transtornadas do art nouveau. Passagens para a confluência dos tempos, para estratégias de leitura de uma cidade que todos escrevemos.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 02]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

DNAR ROCHA, MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 1995
Cosmopolitismo desperdiçado

Fernando Fiorese

Dizer uma cidade é rascunhar a partitura de uma polifonia. São muitas línguas, sotaques vários, entonações dissonantes, dialetos cruzados. Uma cidade se diz no local e no estrangeiro, porque aspira e se realiza como tal apenas no ser cosmopolita. Depois de 27 anos nesta cidade, ainda não encontro resposta para a indagação que certa vez me dirigiu um poeta, artista plástico e jornalista local, hoje radicado em Belo Horizonte: “Por que Juiz de Fora não se tornou cosmopolita?”
Apenas consigo acrescentar a esta uma outra pergunta: “Por que, mal aqui desembarcam, os ‘estrangeiros’ se tornam juizforanos?” E ainda que não nos seja possível definir objetivamente esse ser-juizforano, ao menos um traço ressalta e contamina todos. Trata-se de um olhar excessivamente crítico sobre a cidade – não diria desprezo, mas uma indiferença, um certo pas mal esnobe em relação ao clima, à topografia, à cultura, às questões locais. Para esse enigmático ser-juizforano, a cidade é mera passagem, lugar de trânsito e de eternos trânsfugas. Por isso, raros são os estrangeiros que acrescentam à cor local as tonalidades de suas cidades e países.
Como professor da UFJF já tive alunos de São Paulo e do Pará, do Espírito Santo e do Triângulo Mineiro, de Angola e de Moçambique, do Japão e do Peru. Onde as línguas, sotaques, entonações, dialetos, as cores e a cultura desses estrangeiros? Parece que a hospitalidade do ser-juizforano não ultrapassa o nível da acolhida física. E assim os estrangeiros logo se tornam locais, assumindo os nossos defeitos e qualidades. Seja pela ausência de meios adequados ou pela contaminação do ser-juizforano, tais estrangeiros são compelidos a também habitar a cidade como um lugar de passagem, onde apenas por esquecimento se deixa algo: um botão, um bilhete, um disco, uma lembrança rasurada.
A construção de uma identidade histórica e afetiva de Juiz de Fora deve privilegiar estratégias de afirmação do cosmopolitismo, resgatando as origens polifônicas da cidade (negros, alemães, sírios, italianos, portugueses, libaneses etc.) e criando espaços para a incorporação de manifestações multiculturais. A continuar o desperdício deste cosmopolitismo latente, Juiz de Fora corre o risco não apenas de perseverar na lógica caolha do provincianismo, mas de declinar do papel de pólo regional, de cidade educadora, de paradigma da Zona da Mata.
Trata-se, antes de tudo, de forjar uma identidade, uma imagem de Juiz de Fora, na qual os seus habitantes possam ler o que a cidade produz, contém e incorpora. Desta forma, a mentalidade do ser-juizforano se fará disponível para acolher todas as dimensões do outro, para acrescentar-se das mínimas diferenças do estrangeiro. Seria desnecessário dizer que a urdidura desta imagem identitária de Juiz de Fora deve passar necessariamente pela cultura e pela arte, pela divulgação ampla e sistemática das representações musicais, literárias, plásticas e teatrais que se fez e se faz da cidade. De modo que, tanto para os seus habitantes quanto para os estrangeiros, Juiz de Fora se torne uma cidade visível.

domingo, 5 de agosto de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 01]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

AVENIDA BARÃO DO RIO BRANCO, ANOS 1920

O lugar do imaginário

Fernando Fiorese

As metáforas arqueológicas são as que melhor dizem da relação do homem com as cidades. Habitar uma cidade é escavar as camadas de tempos e espaços, acumuladas e justapostas pelo trabalho de gerações. Labirinto ou Babel, a cena da cidade é menos a matéria concreta de ruas, construções e alguns poucos resíduos naturais do que as imagens e textos registrados na memória e no imaginário dos seus cidadãos.
Mesmo sem a viagem física, ao leitor contumaz é possível dizer da Berlim de Theodor Fontane e Walter Benjamin, da Paris de Charles Baudelaire e Victor Hugo, do Rio de Janeiro  de Machado de Assis e João do Rio, da São Paulo de Oswald e Mário de Andrade. Mas será possível, a nós, habitantes desta cidade, dizer da Juiz de Fora de Pedro Nava, de Murilo Mendes, de Rachel Jardim e tantos outros?
A ênfase excessiva nos aspectos materiais da cidade muitas vezes oblitera a nossa capacidade de pensá-la pelo viés da memória e do imaginário de seus habitantes. Mesmo porque, ao contrário do que acontece em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro (apenas para citar as mais óbvias), as instituições públicas e privadas de Juiz de Fora muito pouco têm-se empenhado na construção de uma identidade histórica e afetiva da cidade.
Enganam-se os que pensam habitar apenas uma cidade física. Como um duplo, a Juiz de Fora da nossa memória nos habita, assombra a matéria do presente. Mesmo desfigurados ou extintos, os lugares e os acontecimentos pretéritos nos assaltam. A paisagem interditada por algum edifício nos espreita quando dobramos uma qualquer esquina. O tempo morto retorna diante do último resíduo arquitetônico do Cine Paraíso.
Habitar uma cidade é aprender a escavar as camadas de tempo e espaço que nos conformam enquanto cidadãos. Onde a Juiz de Fora de Murilo Mendes, cercada de pianos por todos os lados? Onde a Rua Halfeld como um rio de Pedro Nava? Onde as “Imagens de Juiz de Fora” cantadas por Manuel Bandeira? Onde os personagens anônimos de 150 anos de história? Infelizmente enclausurados em livros, álbuns de família, papéis devastados pelo tempo e algumas poucas memórias privilegiadas.
Não se trata de nostalgia nem de anacronismo. Para construir a cidade de todos e de cada um, urge tornar coletivos a memória e o imaginário de Juiz de Fora. Planejar uma cidade para o século XXI implica antes construí-la em nosso imaginário, uma obra antes afetiva do que material. E decerto, possibilitar o acesso dos cidadãos aos textos e imagens que registram o passado e o presente de Juiz de Fora é permitir que possamos encontrar a nossa identidade, mesmo que precária.
No plano das mentalidades, urge um plano estratégico que resulte em investimentos na construção de uma identidade afetiva e histórica de Juiz de Fora, na qual inscrevemos medos, esperanças e utopias para construir a cidade que nos habita na cidade que habitamos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Linhas de sombra


© RICARDO CRISTOFARO
Legendas fotográficas para a cidade em desaparição

Fernando Fiorese

I. Acro-térion

Em grego, cidade acopla Mãe, ser da desmesura: metrópolis = métra (útero, seio materno, matriz) + pólis (cidade, região habitada).
Na modernidade, o étimo delira até os limites do Pai: métron (medida, regra, lei).
Os sonhos da razão produzem órfãos.
Quatro acrotérios sustentam o céu da cidade. Equilíbro delicado: evite mover o olho, o pássaro, o joelho da estátua. Qualquer mudança de ângulo, um pequeno apocalipse.
O homem é a desmedida de todas as cidades.
Acrotério, cautério, necrotério: três palavras dialogam em mistério.
Les morts vont vite. Restam as cicatrizes no corpo da cidade, as rubricas da personagem morta no primeiro ato.
Mistério, do grego mys-térion — talvez “o lugar do rato”, a roer as rodas do tempo, as colunas do espaço.
Da paisagem escreverei a epígrafe ou o epitáfio?

filactério

Je suis un éphémère et point trop mécontent citoyen d’une métropole crue moderrne, parce que tout goût connu a été éludé dans les ameublements et l’extérieur des maisons aussi bien que dans le plan de la ville.

Jean-Arthur Rimbaud
Illuminations


II. Camera lucida

Eis o olho fotográfico, armado de morte e memória.
Na mecânica do olho, a inércia responde pelo movimento, a dinâmica, pela cegueira. Apenas a repetição ensina o olhar.
A cidade prolifera em velo-signos até caber num ponto cego.
Deserto o local do crime, iluminar os pormenores, polir os ossos do cadavre exquis.
Toda memória é fotográfica: rasura do que foi, fatura do que deveria ser.
A câmera como eclipse que dá a ver, como cemitério onde repousa o produto da digestão de Chrónos. 
Portáteis e móveis, as formas iludem o olho e os limites. Mais que a miniatura, sabem impor um horizonte próprio. Mais que a metamorfose, sabem o jogo do símil na diferença.

filactério

La città è ridondante: si ripete perché qualcosa arrivi a fissarsi nella mente.
[...] La memoria è ridondante: ripete i segni perché la città cominci a esistere.

Italo Calvino
Le città invisibili


III. Spielen

Brinquedo é quando deriva o curso da matéria, quando a forma abraça o menino, quando a cidade se torna luz balão.
Trata-se de brincar até o desmantelo da função. Apenas o acidente conserta o brinquedo.
Trata-se de representar até o desmonte da ilusão. Apenas o artifício descarna a imagem das demasias do acabado.
Círculo, quadrado, triângulo. Haverá brinquedo que desconheça essa sucessão de eternidades? Haverá menino que não saiba os seus avessos?
O poeta procura o radical comum de passado e passagem. O menino encontra no Apocalipse a letra do Gênesis. Ambos sonham uma casa em contínua construção.
lições do hóspede sem pressa:
1. Equilibrar-se na linha de visão para escavar o céu, mesmo interditado pelas verticais.
2. Quando esplende a ruína, desviar a mão para a linha de sombra.
3. Colocar a cidade na bagagem ou na caixa de brinquedos.

filactério

Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”...

Walter Benjamin
“Brinquedo e brincadeira”

 Publicado originalmente em
Acroterium (2007),
de Ricardo Cristofaro
Funalfa Edições
Site de Ricardo Cristofaro:


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

[Do livro "Vertov: o homem e sua câmera"]


 
SEIS BOBINAS PARA DZIGA VERTOV [1]

Fernando Fiorese

Ao Carlos Pernisa Júnior,
que dividiu comigo a solidão e o assombro
de uma sessão d’O homem da câmera.


O Caos não tem imagem. Impossível imitar, representar, desenhar, pintar, fotografar, filmar o que está aquém ou além do tempo e do espaço, das medidas e das formas, da palavra e do número. Toda imagem é um duplo fácil e menor do Cosmos – e realizá-la repete, em versão abreviada ou caricata, a própria cosmogonia. Porque produzir uma imagem participa dos modos de ordenar, de mensurar, de formar as coisas do mundo, de eleger – seja por método, afeto ou acaso – aquelas que figuram uma antologia pessoal de seres e objetos, um bricolage de natureza e artifício. Para tanto, necessário armar o olho de artes e ciências raras: a química dos calendários, a decupagem do devir, a física do fora-de-campo, a fisiologia das metamorfoses, a ótica do duplo-cego e do vidente.

O tempo está fora dos gonzos. 
William Shakespeare [2]

Ó Sol, é tempo da Razão ardente...
Guillaume Apollinaire [3]

A epiderme humana das coisas, a derme da realidade,
eis com o que o cinema joga em primeiro lugar. 
Antonin Artaud [4]


Dziga Vertov = Perpetuum mobile. Não basta maquinar um outro nome, urge fazê-lo funcionar, estar à altura de suas operações e utopias, vestir o corpo que o signo dispõe e aciona. E eis que o verbo – Denis Abramovich Kaufman – se fez motor – Dziga Vertov, essa ficção que é toda uma máquina nômade, todo um regime escópico, toda uma música concreta – e ainda toda uma cinematografia. Porque quando a História se torna apêndice do Caos – ainda que seja apenas o pequeno caos dos movimentos da metrópole e das forças do humano, demasiado humano –, é preciso um olho mecânico para arranjar o acaso, para colocar número na tempestade, para pitagorizar o devenir fou e engrenar outros outubros. Na janela do caos, exsurge o homem elétrico e futuro: periscópio + rodas + hélice. No desvio para o vermelho, acrescenta-se a máquina ao músculo.

De corpos ao acaso lançados o mais belo arranjo, o cosmos. 
Heráclito [5]

… menos que nunca a simples reprodução da realidade
consegue dizer algo sobre a realidade. [...]
A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional.
As relações humanas, reificadas – numa fábrica, por exemplo –,
não mais se manifestam. É preciso, pois, construir alguma coisa,
algo de artificial, de fabricado.
Bertolt Brecht [6]


A guerra de todas as coisas é pai, de todas as coisas também rei [7]. A verdade não está na matéria nem na idéia, não está na substância nem no acidente, não está na coisa nem no signo, não está no aparelho nem na natura, não está no indivíduo nem na multidão. A verdade está no pólemos (= choque, combate, guerra), no agón (= jogo, luta, perigo), naquele instante fugaz em que as espadas se tocam e iluminam-se os rostos dos esgrimistas e afirmam-se as suas forças nobres e adversativas num duelo sem fim ou princípio. Nunca está finda a partida quando se trata de adentrar a vida sem roteiro, de acolher o caos que o acaso tem dentro. Nunca está finda a partida quando desdobram-se as alegrias e os paradoxos do número na montagem de corpos, espaços e tempos. Porque, para o olho armado do flâneur, o número é ordem e devir, Pitágoras + Heráclito.

O prazer de estar nas multidões é
uma expressão misteriosa do gozo da multiplicação do número.
Tudo é número. O número está em tudo.
O número está no indivíduo. A embriaguez é um número.
Charles Baudelaire [8]

As máquinas, filhas do homem, e que não têm mãe...
Guillaume Apollinaire [9]


... um cinema pronto a explodir nas nossas mãos... [10] Dziga Vertov dispõe de outros nomes: 1) Guillaume Apollinaire, quando introduz a verdade do cinema na verdade da vida, ou cine-glosa/cine-glaza/cine-gama o acaso objetivo dos encontros, ou geometriza poemas-conversas com imagens alheias, ou dá curto-circuito nos eixos do espaço-tempo; 2) Buster Keaton, quando desconstrói o kinoapparatom, ou apura as engrenagens do corpo com precisão de mecânico, ou prolifera a alegria cool dos disparates, ou caminha com o ciclone e a locomotiva; 3) Velimir Khlébnikov, quando homem de números (ao invés de homem de letras) multiplica-se por zero, ou toma a tabuada da história, ou calcula as leis do tempo conforme os intervalos, ou transvê o homem futuro [11].

... Piedade para nós que sempre combatemos nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro... 
Guillaume Apollinaire [12]

Transvejo através de vós, Números.
E vos vejo vestidos de animais, suas peles,
calmos encostados em carvalhos caídos.
Vós nos ofertais uma dádiva: a unidade entre o serpemóvel
da coluna cósmica e a longe Libra
bailarina. Vós nos ajudais a ver os séculos num fulgor
ridente. Vejo meus olhos sequi-sábios
se abrirem para desvelar
o que Eu
será
quando seu dividendo for um. 
Velimir Khlébnikov [13]


Fábrica de filmes vs. Fábrica de Fatos. Lumière com n cabeças de Méliès. Méliès com n olhos de Lumière. O cinema-feito sendo desfeito, contra-feito. O cinema-por-fazer sendo feito. Ao invés da máscara, a metamorfose ambulante de objetos, corpos, cidades. Ao invés do roteiro, “todas as rodas do mundo rodando desde o começo da roda até a consumação final dos tempos rodando, rodando” (Murilo Mendes) [14]. Ao invés de filmes, o difícil feito de fabricar os fatos, de fac-similar a vida como ela é, sem os fósseis da ficção, sem colocar uniforme nos olhos, sem fardar a imagem com a palavra ou mudá-la ex officio em animal doméstico. Ao invés da mise-en-scène, a mise-en-abyme de pontos, linhas, superfícies, volumes. Ao invés do espelho, o espéculo que não apenas olha dentro a carne do real, também dá a ver as rodas dentadas da sua história.

Há dois modos de conceber o cinema do real:
o primeiro é pretender dar a ver o real;
o segundo é colocar-se o problema do real.
Da mesma forma, havia dois modos de conceber o cinema-verdade.
A primeira era pretender portar a verdade.
A segunda era colocar-se o problema da verdade. 
Edgar Morin [15]


Então o cinema pode ser chamado cinema-verdade,
uma vez que tenha destruído qualquer modelo da verdade
para tornar-se criador, produtor de verdade:
não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema. 
Gilles Deleuze [16]


Horizontes portáteis, um catálogo: 1) o copião das contracenas da história; 2) um jogo de enredar-se nas linhas do tempo, outro de perder-se na cidade; 3) a coleção dos Diálogos de Platão com marginalia de Nietzsche; 4) uma antologia dos trabalhos, dos dias e dos mortos; 5) três tomadas do céu do verão de 1928 em Odessa; 6) um Golem movido a vapor; 7) a biografia da multidão escrita por ela mesma; 8) uma série infinita de matrioshkas; 9) as palavras de ordem: necessidade – precisão – velocidade; 10) um caderno com a tabuada do uno e do múltiplo. Acrescente-se os diários das viagens aventurosas entre Metrópolis e Utopia, ilustrados por fotomontagens de Rodchenko e pelas machines ironiques de Picabia. E tendo por epígrafe um breve excerto do jovem Marx: “A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história universal até agora” [17].

Então Ele pensou em fazer uma imagem móvel da Eternidade e,
ao mesmo tempo em que organizava o céu,
fez da Eternidade que permanece na unidade
esta imagem eterna que progride conforme o número,
e que chamamos Tempo.
Platão [18]

Assim o enamorado da vida universal penetra na multidão
como num imenso reservatório de eletricidade.
Charles Baudelaire [19]

Ao Norte ao Sul
Zênite Nadir
E os altos brados do Leste
O Oceano se alarga para o Oeste
A Torre à Roda
Se destina
Guillaume Apollinaire [20]


Notas

[1] Todos os excertos citados foram traduzidos pelo autor, exceto quando houver indicação em contrário.
[2] SHAKESPEARE, William. Hamlet, act I, scene 5. Harmondsworth : Penguin, 1996.
[3] Apollinaire, Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 314.
[4] ARTAUD, Antonin. Œuvres complètes, t. III. Paris : Gallimard, 1978, p. 19.
[5] HERÁCLITO, fr. 124.
[6] Apud BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo : Brasiliense, 1985, p. 106.
[7] Heráclito, fr. 53.
[8] BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes. Paris : Gallimard, 1961, p. 1189.
[9] Apollinaire, Guillaume. Œuvres en prose complètes, t. II. Paris : Gallimard, 1991, p. 949.
[10] ROUCH, Jean. Cinq regards sur Dziga Vertov. In: SADOUL, Georges. Dziga Vertov. Paris : Éditions Champ Libre, 1971, p. 13.
[11] Não por acaso, também estes vestiram outros nomes: 1) Guglielmo Alberto Dulcigni ou Guillelmus Apollinaris Albertus de Kostrowitsky ou Wilhelm Albert Vladimir Apollinaire de Kostrowitsky ou Wilhelm Kostrowitzky; 2) Joseph Frank Keaton Junior; 3) Victor Vladimirovic Khlébnikov.
[12] Apollinaire, Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 314.
[13] Khlebnikov, Velimir. Collected works of Velimir Khlebnikov: selected poems. Trad. Paul Schmidt. Cambridge : Harvard University Press, 1998, p. 39.
O autor agradece a inestimável colaboração da libriana Angie Miranda Antunes na tradução do inglês ao português do poema “Números”, de Khlébnikov, embora os eventuais equívocos sejam responsabilidade exclusiva daquele.
[14] MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994, p. 736.
[15] MORIN, Edgar. Cinéma et vérité, préambule au festival Cinéma du réel, prononcé à Beaubourg. Paris, 1980.
[16] DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris : Éd. Minuit, 1985, p. 197.
[17] Apud CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos. São Paulo : Brasiliense, 1985, p. 5.
[18] PLATÃO. Timeu, 37d.
[19] BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes. Paris : Gallimard, 1961, p. 1161.
[20] Apollinaire, Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 200.


Nota do autor. Escrito sob o signo do seis, número mágico e erótico (no sentido que os antigos gregos atribuíam a Eros), o presente texto é uma homenagem ao filme de seis bobinas O homem da câmera (Chelovek s kinoapparatom, 1929), de Dziga Vertov. Trata-se de uma montagem que brinca – no mais das vezes ao acaso, mas sem descurar das artimanhas do cálculo – com alguns dos arithmoi pitagóricos, na medida em que acolhe, aos pares ou em trincas, excertos que atraem/repelem os artigos e manifestos de Vertov. Tanto esses escritos do kinok russo quanto outros muitos de autores não referidos são fantasmas a serem desvelados pelo leitor, como um convite à decupagem de uma escrita tensionada entre o registro aleatório de seu próprio movimento, a precária simulação da montagem vertoviana e as rubricas rudimentares de diálogos imaginários.

Publicado originalmente no livro
Vertov: o homem e sua câmera (2009)
organizado por Carlos Pernisa Júnior 
Editora Mauad X