sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Linhas de sombra


© RICARDO CRISTOFARO
Legendas fotográficas para a cidade em desaparição

Fernando Fiorese

I. Acro-térion

Em grego, cidade acopla Mãe, ser da desmesura: metrópolis = métra (útero, seio materno, matriz) + pólis (cidade, região habitada).
Na modernidade, o étimo delira até os limites do Pai: métron (medida, regra, lei).
Os sonhos da razão produzem órfãos.
Quatro acrotérios sustentam o céu da cidade. Equilíbro delicado: evite mover o olho, o pássaro, o joelho da estátua. Qualquer mudança de ângulo, um pequeno apocalipse.
O homem é a desmedida de todas as cidades.
Acrotério, cautério, necrotério: três palavras dialogam em mistério.
Les morts vont vite. Restam as cicatrizes no corpo da cidade, as rubricas da personagem morta no primeiro ato.
Mistério, do grego mys-térion — talvez “o lugar do rato”, a roer as rodas do tempo, as colunas do espaço.
Da paisagem escreverei a epígrafe ou o epitáfio?

filactério

Je suis un éphémère et point trop mécontent citoyen d’une métropole crue moderrne, parce que tout goût connu a été éludé dans les ameublements et l’extérieur des maisons aussi bien que dans le plan de la ville.

Jean-Arthur Rimbaud
Illuminations


II. Camera lucida

Eis o olho fotográfico, armado de morte e memória.
Na mecânica do olho, a inércia responde pelo movimento, a dinâmica, pela cegueira. Apenas a repetição ensina o olhar.
A cidade prolifera em velo-signos até caber num ponto cego.
Deserto o local do crime, iluminar os pormenores, polir os ossos do cadavre exquis.
Toda memória é fotográfica: rasura do que foi, fatura do que deveria ser.
A câmera como eclipse que dá a ver, como cemitério onde repousa o produto da digestão de Chrónos. 
Portáteis e móveis, as formas iludem o olho e os limites. Mais que a miniatura, sabem impor um horizonte próprio. Mais que a metamorfose, sabem o jogo do símil na diferença.

filactério

La città è ridondante: si ripete perché qualcosa arrivi a fissarsi nella mente.
[...] La memoria è ridondante: ripete i segni perché la città cominci a esistere.

Italo Calvino
Le città invisibili


III. Spielen

Brinquedo é quando deriva o curso da matéria, quando a forma abraça o menino, quando a cidade se torna luz balão.
Trata-se de brincar até o desmantelo da função. Apenas o acidente conserta o brinquedo.
Trata-se de representar até o desmonte da ilusão. Apenas o artifício descarna a imagem das demasias do acabado.
Círculo, quadrado, triângulo. Haverá brinquedo que desconheça essa sucessão de eternidades? Haverá menino que não saiba os seus avessos?
O poeta procura o radical comum de passado e passagem. O menino encontra no Apocalipse a letra do Gênesis. Ambos sonham uma casa em contínua construção.
lições do hóspede sem pressa:
1. Equilibrar-se na linha de visão para escavar o céu, mesmo interditado pelas verticais.
2. Quando esplende a ruína, desviar a mão para a linha de sombra.
3. Colocar a cidade na bagagem ou na caixa de brinquedos.

filactério

Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”...

Walter Benjamin
“Brinquedo e brincadeira”

 Publicado originalmente em
Acroterium (2007),
de Ricardo Cristofaro
Funalfa Edições
Site de Ricardo Cristofaro:


Um comentário:

  1. Legendas fotográficas para a cidade em desaparição é um texto muito instigsnte por traçarde modo fragmentário, aforismático, a nossa experiência de subjetivação da cidade: "O homem é a desmedida de todas as cidades".
    Penso em Heráclito e em Walter Benjamin ao ler o seu belo texto.
    Parabéns pelo bom gosto dos textos e do blog.
    Ângela Vieira Campos

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