domingo, 16 de setembro de 2012

José Luiz Ribeiro, dramaturgo [II]

 
 Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro
 
 
 Desmontando a família

Fernando Fiorese

Os muitos modos do riso mais do que aliviam a tensão muscular do rosto cotidiano, apático ou trágico. A convulsão da nossa máscara social diária pelo riso resulta na percepção do modus operandi da máquina lógica que, lenta e inexoravelmente, nos torna avessos ao prazer do acaso que governa a realidade. Seja o riso comedido ou a gargalhada às escâncaras, trata-se sempre do desmonte da ordem tranquilizadora das idéias e dos valores, dos comportamentos e das crenças. Daí talvez o caráter um tanto sacrílego da comédia: um insulto aos deuses instituídos, um desafio aos homens respeitáveis e bem-postos.
Tais breves considerações acerca do riso, rascunhadas por um espectador comum, embora privilegiado e cúmplice, ensejam apenas chamar a atenção do leitor para uma das muitas características da extensa obra do ator, diretor e dramaturgo José Luiz Ribeiro, cuja trajetória à frente do Centro de Estudos Teatrais Grupo Divulgação se confunde com a história de resistência e pioneirismo da cultura e da arte em Juiz de Fora nas últimas três ou quatro décadas. Refiro-me à obra de comediógrafo do autor juizforano, que encontra em Botanágua, sua montagem mais recente, um exemplo acabado da estratégia especular (no sentido verbal e substantivo) utilizada por José Luiz Ribeiro para desmontar a realidade brasileira cotidiana.
Ao modo da melhor tradição cômica, o autor elege a cena doméstica o universo minúsculo de uma família classe média baixa como espelho no qual abismar os espectadores para especularmos uma realidade que, por demasiado maiúscula e complexa, muitas vezes nos submete e paralisa.
Assim, na superfície deste espelho algo banal e imediatamente reconhecível nos defrontamos com o desmonte de uma família tipicamente juizforana e brasileira, a minha, a sua e pasmem! a do próprio autor e diretor. As referências pessoais e locais não devem ser entendidas, no entanto, no sentido do provinciano ou do ocasional. São antes estratégias utilizadas para facilitar o imediato estabelecimento do pacto de representação e, principalmente, para engendrar as gags que desmantelam em riso o nosso rosto pequeno-burguês, enquanto acompanhamos o desmoronamento da família em cena.
O local e o doméstico são apenas sintomas dos apagões ético, social, político, econômico e cultural que acossam a realidade brasileira contemporânea. Desmontando a família de todos e de cada um, Botanágua nos desafia a ultrapassar as iluminações midiáticas e o aço do neoliberalismo para, através do espelho e não sem dor, nos defrontarmos com a face trágica do Brasil atual, urdida em 500 anos de injustiça e corrupção. Num híbrido de Mário de Andrade e Charles Chaplin, José Luiz Ribeiro atualiza “os males do Brasil são”, sem nunca perder o lirismo e a ternura em relação àqueles que sabem a festa e o riso, ainda que à beira das trevas.
Como Era sempre 1° de abril e O príncipe rufião, apenas para citar dois exemplos, Botanágua opera no terreno indecidível, na região difícil e por isso a poucos dramaturgos franqueada entre a alegria e a dor, entre o cômico e o trágico, entre o lírico e o prosaico, entre os vivas e os pesares afinal, esta a cena brasileira. E José Luiz Ribeiro sabe vencer artifícios economicistas e logros midiáticos para trazer ao proscênio e colocar sob as luzes que ainda nos restam as verdades intestinas e as grandezas que, embora inauditas ou subestimadas, nos fazem ser o povo brasileiro.  
 
Artigo publicado na revista-programa
do espetáculo teatral Botanágua, de José Luiz Ribeiro.
Montagem do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação, 
1º semestre de 2001.
 


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