terça-feira, 7 de agosto de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 02]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

DNAR ROCHA, MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 1995
Cosmopolitismo desperdiçado

Fernando Fiorese

Dizer uma cidade é rascunhar a partitura de uma polifonia. São muitas línguas, sotaques vários, entonações dissonantes, dialetos cruzados. Uma cidade se diz no local e no estrangeiro, porque aspira e se realiza como tal apenas no ser cosmopolita. Depois de 27 anos nesta cidade, ainda não encontro resposta para a indagação que certa vez me dirigiu um poeta, artista plástico e jornalista local, hoje radicado em Belo Horizonte: “Por que Juiz de Fora não se tornou cosmopolita?”
Apenas consigo acrescentar a esta uma outra pergunta: “Por que, mal aqui desembarcam, os ‘estrangeiros’ se tornam juizforanos?” E ainda que não nos seja possível definir objetivamente esse ser-juizforano, ao menos um traço ressalta e contamina todos. Trata-se de um olhar excessivamente crítico sobre a cidade – não diria desprezo, mas uma indiferença, um certo pas mal esnobe em relação ao clima, à topografia, à cultura, às questões locais. Para esse enigmático ser-juizforano, a cidade é mera passagem, lugar de trânsito e de eternos trânsfugas. Por isso, raros são os estrangeiros que acrescentam à cor local as tonalidades de suas cidades e países.
Como professor da UFJF já tive alunos de São Paulo e do Pará, do Espírito Santo e do Triângulo Mineiro, de Angola e de Moçambique, do Japão e do Peru. Onde as línguas, sotaques, entonações, dialetos, as cores e a cultura desses estrangeiros? Parece que a hospitalidade do ser-juizforano não ultrapassa o nível da acolhida física. E assim os estrangeiros logo se tornam locais, assumindo os nossos defeitos e qualidades. Seja pela ausência de meios adequados ou pela contaminação do ser-juizforano, tais estrangeiros são compelidos a também habitar a cidade como um lugar de passagem, onde apenas por esquecimento se deixa algo: um botão, um bilhete, um disco, uma lembrança rasurada.
A construção de uma identidade histórica e afetiva de Juiz de Fora deve privilegiar estratégias de afirmação do cosmopolitismo, resgatando as origens polifônicas da cidade (negros, alemães, sírios, italianos, portugueses, libaneses etc.) e criando espaços para a incorporação de manifestações multiculturais. A continuar o desperdício deste cosmopolitismo latente, Juiz de Fora corre o risco não apenas de perseverar na lógica caolha do provincianismo, mas de declinar do papel de pólo regional, de cidade educadora, de paradigma da Zona da Mata.
Trata-se, antes de tudo, de forjar uma identidade, uma imagem de Juiz de Fora, na qual os seus habitantes possam ler o que a cidade produz, contém e incorpora. Desta forma, a mentalidade do ser-juizforano se fará disponível para acolher todas as dimensões do outro, para acrescentar-se das mínimas diferenças do estrangeiro. Seria desnecessário dizer que a urdidura desta imagem identitária de Juiz de Fora deve passar necessariamente pela cultura e pela arte, pela divulgação ampla e sistemática das representações musicais, literárias, plásticas e teatrais que se fez e se faz da cidade. De modo que, tanto para os seus habitantes quanto para os estrangeiros, Juiz de Fora se torne uma cidade visível.

2 comentários:

  1. Aloísio Marioni Abib8 de agosto de 2012 às 06:08

    Excelente reflexão, Fernando. Fez-me lembrar uma pergunta que me ficou por muito tempo na cabeça quando conheci comunidades de descendentes de italianos em São Paulo: por que o bairro Grama, colonizado no início do século passado por quase 10 numerosas famílias italianas (isso em uma comunidade que contava com "40 fogos e tres casas commerciaes" não deixa de ser muito!) nunca desenvolveu uma identidade italo-brasileira. De italianos, temos apenas, quando muito, o sobrenome e o espaguete do domingo - que, de resto, já se abrasileirou há muito. Nenhuma festa, nehuma tradição, ninguém que eu saiba que haja aprendido a língua com os avós. Passamos, aparentemente e salvo melhor juízo, sem deixar marcas culturais de monta. Daqui a algum tempo, Freguglia, Frizero, Ferrugini, Petrato, Marioni, Carraci, Agostini, Dalamura... serão apenas nomes de cuja origem seus portadores pouco ou nada saberão! Não que se pugne aqui pelo enquistamento étnico-cultural, mas, diferentemente, penso na contribuição milionária de todas as vozes, de todas as cores e de muitos sabores e saberes.

    Parabéns pelo blog. Um abraço!

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    1. Muito obrigado, Aloísio, pelo comentário e, principalmente, pela contribuição exemplar. Em crônica posterior, voltarei a esta mesma questão, considerando outros aspectos.
      Com certeza, qualquer dia desses, teremos ocasião de conversar pessoalmente a respeito.
      Forte abraço,
      Fernando

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