sábado, 8 de setembro de 2012

A morte ronda o cronista


FAMÍLIA FIORESE FURTADO, PIRAPETINGA, MINAS GERAIS, DEZEMBRO DE 1969

Fernando Fiorese

Todos estamos sujeitos às rondas da morte. E não digo dos avances das Parcas em direção ao nosso próprio corpo, trazendo nas mãos a tesoura que, de repente, interromperá o fio da vida; trazendo nos lábios o esgar cantado por Augusto dos Anjos. Nem poderia dizer da “Dama Branca” que assombrou a vida de Manuel Bandeira e, demudada em verso, transformou-se numa das mais vigorosas metáforas da lírica brasileira moderna. Bem poucos percebemos as rondas da própria morte, os seus caprichos físicos. Talvez como uma forma de ludibriá-la (ou, ao menos, adiá-la), nos recusamos a ouvir os seus passos velozes em direção ao nosso corpo vivo e transitório.
Mas chega um tempo em que os mortos começam a cumular os bolsos de nossa sobrecasaca. Pode-se cantar esses mortos, como fez Drummond e muitos outros. Assim, é ela, a morte, quem ludibria o nosso desejo de permanência, as nossas táticas de escondimento, para nos ensinar as suas máscaras na morte dos outros. Tudo principia pela morte vizinha, aquela que, por distante, emociona apenas momentaneamente, para ser logo conduzida aos porões da memória. Porque não consanguínea, trata-se de uma experiência muitas vezes menor, pois que a falta não dá à vista, não empresta ao nosso corpo a sensação de mutilamento.
Com a idade, a “indesejada das gentes” (ah, Bandeira, consola-me!) se avizinha mais e mais. Primos distantes, pais de amigos, ex-colegas de ginásio... O passo pode ser lento, mas não retrocede jamais. E amiudam as notícias que os vivos nos dão dela. Antes que possamos ter consciência, a morte nos serve o prato do dia. Resta-me, hoje, apenas a avó materna — à beira da morte no leito de um hospital. Não devo lamentar que morram, tive os meus avós e os degustei por longos anos. O avô materno, por exemplo, alcançou a casa dos 99. Foi-se em sono e em sonhos. Antes dele, avô paterno e avó materna, ambos octogenários ou quase. Não devo lamentar que morram; as mortes inesperadas, abruptas, jovens, acidentais talvez comportem dor maior.
Ao contrário, devo aprender a lição que minha avó materna, Dona Rosa, tentava nos ensinar com suas palavras secas e ríspidas como o Alentejo de onde vieram seus pais portugueses. “Não tenho medo da morte. Pensam que vou ficar pra semente?” – dizia ela, avó desde sempre, como decerto são todas as avós e todos os avôs aos olhos aprendizes da criança. Assustava-me aquela afirmação do caráter finito da vida, cujo aprendizado dói porque não se dá pela teoria, mas pela prática de sobreviver aos que amamos. E esta mulher sobreviveu à morte prematura de um filho, até que um dia, como quem cansa de uma determinada atividade rotineira, decidiu deixar que a própria vida fosse interrompida. E foi-se, digna, serena, em paz – talvez sem saber-se desde sempre semente.
Enquanto aqui escrevo, também a vida de minha avó Rosita se esvai num leito de hospital da cidade de Pirapetinga. Outra semente se fecha em copas, lentamente, já ultrapassados os 94 anos de existência. Não é de se lamentar que, enfim, descanse o corpo maltratado pela lavra da terra, pelo parto dos filhos, pela intempérie das pequenas doenças. Lamento apenas as palavras que não poderei dizer-lhe, a mão que nunca mais poderei tocar, o rosto que não poderei contemplar ainda que pela última vez. Morre porque cansou-se da vida, porque decidiu enfim abandonar-se à dissolução, porque compreendeu a necessidade de cair no álbum de retratos e ser apenas a lembrança que alimenta os seus. E cá estou eu, egoísta, a lamentar sobretudo as lições de vida que a sua morte interrompe, como se se fechasse em ferros um livro precioso que nunca mais poderei folhear.  

Juiz de Fora, 15 de março de 2001

6 comentários:

  1. Disse tudo, Fernando. "O passo pode ser lento, mas não retrocede mais." Qual de nós, após algumas décadas de vida, não convive cada vez mais com o som surdo dessas passadas lentas que vêm fechando o cerco à nossa volta - inclemente, absoluta, inexorável.
    Parabéns!

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  2. Meu amigo... poderia me esticar, mas me falta as palavras.

    Forte abraço.

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  3. Parabéns pelo belo trabalho,Fiorese. Sucesso sempre, Stella

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  4. Fiquei emocionada!! Falou tudo.

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  5. Fernando pode me dar o endereço deste hospital por favor?

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    1. Olá, Mercedes!
      Não sei o endereço do hospital, mas é o único que existe em Pirapetinga, pequena cidade de cerca de 9 mil habitantes. Portanto, não será difícil localizá-lo.
      Abraços,
      Fernando

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