quarta-feira, 12 de setembro de 2012

José Luiz Ribeiro, dramaturgo [I]



 Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro

O último portal

 
Fernando Fiorese

A peça O último portal, montagem do Grupo Divulgação estreada no último dia 19 de outubro, poderia ter como epígrafe este verso de Virgílio (Eneida II, 369): “Plurima mortis imago” (“A morte em múltiplas formas”). Ao realizar uma versão livre do cult-movie do cineasta sueco Ingmar Bergman, O sétimo selo (Det Sjunde Inseglet, 1956), o dramaturgo, ator e diretor José Luiz Ribeiro nos oferece um resumo vigoroso das questões que mobilizam o fim do século XX.
A despeito da cronologia, um século não tem data para terminar. Por vezes, penetra com suas características a idade subsequente, como o século XIX prolongou-se século XX adentro para terminar apenas por volta da Primeira Guerra (1914-1918). Também o nosso século, cujo fim tem merecido tantas comemorações, agoniza mas não morre. E assim foi ao longo dos últimos 100 anos, a ponto de podermos perguntar: de quantas mortes um século precisa para, enfim, morrer?
Os paradoxos deste tempo terminal e interminável, as aporias desta idade que repetidas vezes exsurge de seus próprios escombros, as muitas danças da morte no século XX – eis algumas das questões que O último portal nos propõe sob a rubrica farsesca do medievo. Numa época em que mesmo os acontecimentos mais violentos e degradantes, mediatizados pelas tecnologias da imagem, adquirem uma aura de glamour e assepsia, a peça de José Luiz Ribeiro funciona como a contracena desta era de belas imagens, ainda quando registraram o terror nazi-fascista, a rosa de Hiroshima, as vítimas das ditaduras, os miseráveis do Terceiro Mundo...
Avessa ao cosmético e ao ilusionismo realista, a cena crua de O último portal nos coloca diante do espelho transtornado deste século que, dentre outras muitas tragédias, produziu a tradução concreta da letra do Apocalipse. Conforme a palavra latina imago, a imagem não é aqui mais que uma profusão de espectros, a legião de mortos do século. Tendo como guia a Enviada, na interpretação precisa de Márcia Falabella, os personagens atravessam a selva selvaggia do tempo presente rumo ao Julgamento Final, quando então desvelam-se os muitos passos da dança secular da Morte.
O pendor alegórico do dramaturgo faz de cada personagem um arquétipo das potências destrutivas da nossa época. A peste, o espírito bélico (Antonius, o cavaleiro/Leandro Boscato), o bovarismo (Lisa, a mulher do açougueiro/Marise Mendes), a intolerância (inquisidores e aldeãs) e a subserviência ao poder (João, o escudeiro/José Luiz Ribeiro, Ator/Júlio Andrade, Míriam, a mulher de Antonius/Rinara Souza) são apenas algumas das máscaras do extenso repertório que tornaram a Morte a figura dominante deste século que escolheu a guerra como cenário.
Trata-se de uma peça melancólica, como o século. Embora a figura de Maria (Cristina Braga), símbolo de esperança, na montagem do Grupo Divulgação o tom farsesco não consegue suavizar a máscara trágica do nosso tempo, quando já não é mais possível encontrar no Apocalipse a letra do Gênesis.  

Juiz de Fora, 19 de outubro de 2000

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