SEIS BOBINAS
PARA DZIGA VERTOV [1]
Fernando
Fiorese
Ao Carlos Pernisa Júnior,
que dividiu comigo a solidão e o assombro
de uma
sessão d’O homem da câmera.
O Caos não tem imagem. Impossível
imitar, representar, desenhar, pintar, fotografar, filmar o que está aquém ou
além do tempo e do espaço, das medidas e das formas, da palavra e do número.
Toda imagem é um duplo fácil e menor do Cosmos – e realizá-la repete, em versão
abreviada ou caricata, a própria cosmogonia. Porque produzir uma imagem
participa dos modos de ordenar, de mensurar, de formar as coisas do
mundo, de eleger – seja por método, afeto ou acaso – aquelas que figuram uma
antologia pessoal de seres e objetos, um bricolage
de natureza e artifício. Para
tanto, necessário armar o olho de artes e ciências raras: a química dos
calendários, a decupagem do devir, a física do fora-de-campo, a fisiologia das
metamorfoses, a ótica do duplo-cego e do vidente.
O tempo está fora dos gonzos.
William Shakespeare [2]
Ó Sol, é tempo da Razão ardente...
Guillaume Apollinaire [3]
A epiderme humana das coisas, a derme da
realidade,
eis com o que o cinema joga em primeiro
lugar.
Antonin Artaud [4]
Dziga Vertov = Perpetuum mobile. Não basta maquinar um outro
nome, urge fazê-lo funcionar, estar à altura de suas operações e utopias,
vestir o corpo que o signo dispõe e aciona. E eis que o verbo – Denis
Abramovich Kaufman – se fez motor – Dziga Vertov, essa ficção que é toda uma máquina nômade, todo um
regime escópico, toda uma música concreta – e ainda toda uma cinematografia.
Porque quando a História se torna apêndice do Caos – ainda que seja apenas o
pequeno caos dos movimentos da metrópole e das forças do humano, demasiado
humano –, é preciso um olho mecânico para arranjar o acaso, para colocar número
na tempestade, para pitagorizar o devenir fou e engrenar outros
outubros. Na janela do caos, exsurge o homem elétrico e futuro: periscópio
+ rodas + hélice.
No desvio para o vermelho, acrescenta-se a máquina ao músculo.
De corpos ao acaso lançados o mais belo arranjo,
o cosmos.
Heráclito [5]
… menos que nunca a simples
reprodução da realidade
consegue dizer algo sobre a
realidade. [...]
A verdadeira realidade transformou-se
na realidade funcional.
As relações humanas, reificadas –
numa fábrica, por exemplo –,
não mais se manifestam. É preciso,
pois, construir alguma coisa,
algo de artificial, de fabricado.
Bertolt Brecht [6]
A guerra de todas as coisas é pai, de todas as
coisas também rei [7]. A verdade não está na
matéria nem na idéia, não está na substância nem no acidente, não está na coisa
nem no signo, não está no aparelho nem na natura, não está no indivíduo nem na
multidão. A verdade está no pólemos (= choque, combate, guerra), no agón
(= jogo, luta, perigo), naquele instante fugaz em que as espadas se tocam e
iluminam-se os rostos dos esgrimistas e afirmam-se as suas forças nobres e
adversativas num duelo sem fim ou princípio. Nunca está finda a partida quando
se trata de adentrar a vida sem roteiro, de acolher o caos que o acaso tem
dentro. Nunca está finda a partida quando desdobram-se as alegrias e os
paradoxos do número na montagem de corpos, espaços e tempos. Porque, para o olho
armado do flâneur, o número é ordem e devir, Pitágoras + Heráclito.
O prazer de estar nas multidões é
uma expressão misteriosa do gozo da multiplicação do número.
Tudo é número. O
número está em tudo.
O
número está no indivíduo. A embriaguez é um número.
Charles Baudelaire [8]
As
máquinas, filhas do homem, e que não têm mãe...
Guillaume
Apollinaire [9]
... um cinema pronto a explodir nas nossas
mãos... [10]
Dziga Vertov dispõe de outros nomes: 1) Guillaume
Apollinaire, quando introduz
a verdade do cinema na verdade da vida, ou cine-glosa/cine-glaza/cine-gama
o acaso objetivo dos encontros, ou geometriza poemas-conversas com
imagens alheias, ou dá curto-circuito nos eixos do espaço-tempo; 2)
Buster Keaton, quando desconstrói o kinoapparatom, ou apura as
engrenagens do corpo com precisão de mecânico, ou prolifera a alegria cool
dos disparates, ou caminha com o ciclone e a locomotiva; 3) Velimir Khlébnikov,
quando homem de números (ao invés de homem de letras) multiplica-se por zero,
ou toma a tabuada da história, ou calcula as leis do tempo conforme os
intervalos, ou transvê o homem futuro [11].
...
Piedade para nós que sempre combatemos nas fronteiras
Do
ilimitado e do futuro...
Guillaume
Apollinaire [12]
Transvejo através de vós, Números.
E vos vejo vestidos de animais, suas peles,
calmos encostados em carvalhos caídos.
Vós nos ofertais uma dádiva: a
unidade entre o serpemóvel
da coluna cósmica e a longe Libra
bailarina. Vós nos ajudais a ver os séculos
num fulgor
ridente. Vejo meus olhos sequi-sábios
se abrirem para desvelar
o que Eu
será
quando seu dividendo for um.
Velimir
Khlébnikov [13]
Fábrica de filmes vs. Fábrica de Fatos. Lumière com n cabeças de Méliès.
Méliès com n olhos de Lumière. O cinema-feito sendo desfeito, contra-feito.
O cinema-por-fazer sendo feito. Ao invés da máscara, a metamorfose ambulante de
objetos, corpos, cidades. Ao invés do roteiro, “todas as rodas do mundo rodando
desde o começo da roda até a consumação final dos tempos rodando, rodando”
(Murilo Mendes) [14]. Ao invés de filmes, o difícil feito de
fabricar os fatos, de fac-similar a vida como ela é, sem os fósseis da ficção,
sem colocar uniforme nos olhos, sem fardar a imagem com a palavra ou mudá-la ex officio em animal doméstico. Ao invés da mise-en-scène, a mise-en-abyme
de pontos, linhas, superfícies, volumes. Ao invés do espelho, o espéculo que
não apenas olha dentro a carne do real, também dá a ver as rodas dentadas da
sua história.
Há
dois modos de conceber o cinema do real:
o
primeiro é pretender dar a ver o real;
o
segundo é colocar-se o problema do real.
Da
mesma forma, havia dois modos de conceber o cinema-verdade.
A
primeira era pretender portar a verdade.
A segunda era colocar-se o problema da verdade.
Edgar Morin [15]
Então o cinema
pode ser chamado cinema-verdade,
uma vez que
tenha destruído qualquer modelo da verdade
para tornar-se
criador, produtor de verdade:
não será um cinema da verdade, mas a verdade do
cinema.
Gilles Deleuze [16]
Horizontes portáteis, um catálogo: 1) o copião das contracenas
da história; 2) um jogo de enredar-se nas linhas do tempo, outro de perder-se
na cidade; 3) a coleção dos Diálogos de Platão com marginalia de
Nietzsche; 4) uma antologia dos trabalhos, dos dias e dos mortos; 5) três
tomadas do céu do verão de 1928 em Odessa; 6) um Golem movido a vapor; 7) a
biografia da multidão escrita por ela mesma; 8) uma série infinita de matrioshkas; 9) as palavras de
ordem: necessidade – precisão – velocidade; 10) um caderno com a tabuada do uno e do múltiplo. Acrescente-se
os diários das viagens aventurosas entre Metrópolis e Utopia, ilustrados por
fotomontagens de Rodchenko e pelas machines ironiques de Picabia. E
tendo por epígrafe um breve excerto do jovem Marx: “A educação dos cinco
sentidos é trabalho de toda a história universal até agora” [17].
Então Ele pensou em fazer uma imagem móvel da Eternidade e,
ao mesmo tempo em que organizava o céu,
fez da Eternidade que permanece na unidade
esta imagem eterna que progride conforme o número,
e que chamamos Tempo.
Platão [18]
Assim o enamorado da vida universal penetra na
multidão
como num imenso reservatório de eletricidade.
Charles Baudelaire [19]
Ao
Norte ao Sul
Zênite
Nadir
E
os altos brados do Leste
O
Oceano se alarga para o Oeste
A
Torre à Roda
Se
destina
Guillaume
Apollinaire [20]
Notas
[1] Todos os excertos citados
foram traduzidos pelo autor, exceto quando houver indicação em contrário.
[2] SHAKESPEARE, William. Hamlet, act I, scene 5. Harmondsworth : Penguin, 1996.
[3] Apollinaire,
Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 314.
[4] ARTAUD, Antonin. Œuvres complètes, t. III. Paris : Gallimard, 1978, p. 19.
[6] Apud BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet.
São Paulo : Brasiliense, 1985, p. 106.
[8] BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes. Paris :
Gallimard, 1961, p. 1189.
[9] Apollinaire,
Guillaume. Œuvres en prose complètes, t. II. Paris : Gallimard,
1991, p. 949.
[10] ROUCH, Jean. Cinq regards sur Dziga Vertov. In: SADOUL, Georges. Dziga Vertov. Paris : Éditions Champ Libre, 1971, p. 13.
[11] Não por acaso, também estes vestiram outros nomes: 1) Guglielmo Alberto
Dulcigni ou Guillelmus Apollinaris Albertus de Kostrowitsky ou Wilhelm Albert
Vladimir Apollinaire de Kostrowitsky ou Wilhelm Kostrowitzky; 2)
Joseph Frank Keaton Junior; 3) Victor Vladimirovic Khlébnikov.
[12] Apollinaire,
Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 314.
[13] Khlebnikov,
Velimir. Collected works of Velimir Khlebnikov: selected poems. Trad. Paul Schmidt.
Cambridge : Harvard University Press, 1998, p. 39.
O autor agradece a
inestimável colaboração da libriana Angie Miranda Antunes na tradução do inglês
ao português do poema “Números”, de Khlébnikov, embora os eventuais equívocos
sejam responsabilidade exclusiva daquele.
[14] MENDES, Murilo. Poesia
completa e prosa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994, p. 736.
[15] MORIN, Edgar. Cinéma et vérité, préambule au festival
Cinéma du réel, prononcé à Beaubourg. Paris, 1980.
[16] DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris : Éd. Minuit, 1985, p. 197.
[17] Apud CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco
sentidos.
São Paulo : Brasiliense, 1985, p. 5.
[19] BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes. Paris :
Gallimard, 1961, p. 1161.
[20] Apollinaire,
Guillaume. Œuvres poétiques. Paris : Gallimard, 1959, p. 200.
Nota do autor. Escrito sob o signo do seis, número mágico e erótico (no sentido que os
antigos gregos atribuíam a Eros), o presente texto é uma homenagem ao filme de
seis bobinas O homem da câmera (Chelovek
s kinoapparatom, 1929), de Dziga
Vertov. Trata-se de uma montagem que brinca – no mais das vezes ao acaso, mas
sem descurar das artimanhas do cálculo – com alguns dos arithmoi pitagóricos, na medida em que acolhe, aos pares ou em trincas,
excertos que atraem/repelem os artigos e manifestos de Vertov. Tanto esses
escritos do kinok russo quanto outros muitos de autores não
referidos são fantasmas a serem desvelados pelo leitor, como um convite à
decupagem de uma escrita tensionada entre o registro aleatório de seu próprio movimento,
a precária simulação da montagem vertoviana e as rubricas rudimentares de
diálogos imaginários.
Publicado originalmente no livro
Vertov: o homem e sua câmera (2009),
organizado por Carlos Pernisa Júnior
Editora Mauad X