© RICARDO CRISTOFARO |
Legendas
fotográficas para a cidade em desaparição
Fernando Fiorese
I. Acro-térion
Em grego, cidade acopla
Mãe, ser da desmesura: metrópolis = métra (útero, seio materno, matriz) + pólis (cidade, região habitada).
Na modernidade, o étimo
delira até os limites do Pai: métron
(medida, regra, lei).
Os sonhos da razão
produzem órfãos.
•
Quatro acrotérios
sustentam o céu da cidade. Equilíbro delicado: evite mover o olho, o pássaro, o
joelho da estátua. Qualquer mudança de ângulo, um pequeno apocalipse.
•
O homem é a desmedida de
todas as cidades.
•
Acrotério, cautério,
necrotério: três palavras dialogam em mistério.
•
Les morts vont vite. Restam as cicatrizes no corpo da
cidade, as rubricas da personagem morta no primeiro ato.
•
Mistério, do grego mys-térion — talvez “o lugar do rato”, a
roer as rodas do tempo, as colunas do espaço.
•
Da paisagem escreverei a
epígrafe ou o epitáfio?
filactério
Je suis un éphémère et
point trop mécontent citoyen d’une métropole crue moderrne, parce que tout goût
connu a été éludé dans les ameublements et l’extérieur des maisons aussi bien
que dans le plan de la ville.
Jean-Arthur Rimbaud
Illuminations
II. Camera lucida
Eis o olho fotográfico,
armado de morte e memória.
•
Na mecânica do olho, a
inércia responde pelo movimento, a dinâmica, pela cegueira. Apenas a repetição
ensina o olhar.
A cidade prolifera em velo-signos até caber num ponto cego.
•
Deserto o local do
crime, iluminar os pormenores, polir os ossos do cadavre exquis.
•
Toda memória é
fotográfica: rasura do que foi, fatura do que deveria ser.
•
A câmera como eclipse
que dá a ver, como cemitério onde repousa o produto da digestão de
Chrónos.
•
Portáteis e móveis, as
formas iludem o olho e os limites. Mais que a miniatura, sabem impor um
horizonte próprio. Mais que a metamorfose, sabem o jogo do símil na diferença.
filactério
La città è ridondante: si
ripete perché qualcosa arrivi a fissarsi nella mente.
[...] La memoria è
ridondante: ripete i segni perché la città cominci a esistere.
Italo Calvino
Le città invisibili
III. Spielen
Brinquedo é quando
deriva o curso da matéria, quando a forma abraça o menino, quando a cidade se
torna luz balão.
•
Trata-se de brincar até
o desmantelo da função. Apenas o acidente conserta o brinquedo.
Trata-se de representar
até o desmonte da ilusão. Apenas o artifício descarna a imagem das demasias do
acabado.
•
Círculo, quadrado,
triângulo. Haverá brinquedo que desconheça essa sucessão de eternidades? Haverá
menino que não saiba os seus avessos?
•
O poeta procura o
radical comum de passado e passagem. O menino encontra no Apocalipse a letra do Gênesis.
Ambos sonham uma casa em contínua construção.
•
lições
do hóspede sem pressa:
1. Equilibrar-se na
linha de visão para escavar o céu, mesmo interditado pelas verticais.
2. Quando esplende a ruína,
desviar a mão para a linha de sombra.
3. Colocar a cidade na
bagagem ou na caixa de brinquedos.
filactério
Talvez seja esta a raiz mais
profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo
seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não
é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”...
Walter
Benjamin
“Brinquedo
e brincadeira”
Publicado originalmente em
Acroterium (2007),
de
Ricardo Cristofaro
Funalfa Edições
Site de Ricardo Cristofaro:
Legendas fotográficas para a cidade em desaparição é um texto muito instigsnte por traçarde modo fragmentário, aforismático, a nossa experiência de subjetivação da cidade: "O homem é a desmedida de todas as cidades".
ResponderExcluirPenso em Heráclito e em Walter Benjamin ao ler o seu belo texto.
Parabéns pelo bom gosto dos textos e do blog.
Ângela Vieira Campos