Série de nove crônicas publicadas
originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.
DNAR ROCHA, MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 1995 |
Cosmopolitismo desperdiçado
Fernando Fiorese
Dizer
uma cidade é rascunhar a partitura de uma polifonia. São muitas línguas,
sotaques vários, entonações dissonantes, dialetos cruzados. Uma cidade se diz
no local e no estrangeiro, porque aspira e se realiza como tal apenas no ser
cosmopolita. Depois de 27 anos nesta cidade, ainda não encontro resposta para a
indagação que certa vez me dirigiu um poeta, artista plástico e jornalista
local, hoje radicado em
Belo Horizonte: “Por que Juiz de Fora não se tornou
cosmopolita?”
Apenas
consigo acrescentar a esta uma outra pergunta: “Por que, mal aqui desembarcam,
os ‘estrangeiros’ se tornam juizforanos?” E ainda que não nos seja possível definir
objetivamente esse ser-juizforano,
ao menos um traço ressalta e contamina todos. Trata-se de um olhar
excessivamente crítico sobre a cidade – não diria desprezo, mas uma
indiferença, um certo pas mal esnobe em relação ao clima, à
topografia, à cultura, às questões locais. Para esse enigmático ser-juizforano,
a cidade é mera passagem, lugar de trânsito e de eternos trânsfugas. Por isso,
raros são os estrangeiros que acrescentam à cor local as tonalidades de suas
cidades e países.
Como
professor da UFJF já tive alunos de São Paulo e do Pará, do Espírito Santo e do
Triângulo Mineiro, de Angola e de Moçambique, do Japão e do Peru. Onde as línguas,
sotaques, entonações, dialetos, as cores e a cultura desses estrangeiros? Parece
que a hospitalidade do ser-juizforano não ultrapassa o nível da acolhida
física. E assim os estrangeiros logo se tornam locais, assumindo os nossos
defeitos e qualidades. Seja pela ausência de meios adequados ou pela
contaminação do ser-juizforano, tais estrangeiros são compelidos a também
habitar a cidade como um lugar de passagem, onde apenas por esquecimento se
deixa algo: um botão, um bilhete, um disco, uma lembrança rasurada.
A
construção de uma identidade histórica e afetiva de Juiz de Fora deve privilegiar
estratégias de afirmação do cosmopolitismo, resgatando as origens polifônicas
da cidade (negros, alemães, sírios, italianos, portugueses, libaneses etc.) e
criando espaços para a incorporação de manifestações multiculturais. A
continuar o desperdício deste cosmopolitismo latente, Juiz de Fora corre o
risco não apenas de perseverar na lógica caolha do provincianismo, mas de
declinar do papel de pólo regional, de cidade educadora, de paradigma da Zona
da Mata.
Trata-se,
antes de tudo, de forjar uma identidade, uma imagem de Juiz de Fora, na qual os
seus habitantes possam ler o que a cidade produz, contém e incorpora. Desta
forma, a mentalidade do ser-juizforano se fará disponível para acolher todas as
dimensões do outro, para acrescentar-se das mínimas diferenças do estrangeiro.
Seria desnecessário dizer que a urdidura desta imagem identitária de Juiz de
Fora deve passar necessariamente pela cultura e pela arte, pela divulgação
ampla e sistemática das representações musicais, literárias, plásticas e
teatrais que se fez e se faz da cidade. De modo que, tanto para os seus
habitantes quanto para os estrangeiros, Juiz de Fora se torne uma cidade
visível.
Excelente reflexão, Fernando. Fez-me lembrar uma pergunta que me ficou por muito tempo na cabeça quando conheci comunidades de descendentes de italianos em São Paulo: por que o bairro Grama, colonizado no início do século passado por quase 10 numerosas famílias italianas (isso em uma comunidade que contava com "40 fogos e tres casas commerciaes" não deixa de ser muito!) nunca desenvolveu uma identidade italo-brasileira. De italianos, temos apenas, quando muito, o sobrenome e o espaguete do domingo - que, de resto, já se abrasileirou há muito. Nenhuma festa, nehuma tradição, ninguém que eu saiba que haja aprendido a língua com os avós. Passamos, aparentemente e salvo melhor juízo, sem deixar marcas culturais de monta. Daqui a algum tempo, Freguglia, Frizero, Ferrugini, Petrato, Marioni, Carraci, Agostini, Dalamura... serão apenas nomes de cuja origem seus portadores pouco ou nada saberão! Não que se pugne aqui pelo enquistamento étnico-cultural, mas, diferentemente, penso na contribuição milionária de todas as vozes, de todas as cores e de muitos sabores e saberes.
ResponderExcluirParabéns pelo blog. Um abraço!
Muito obrigado, Aloísio, pelo comentário e, principalmente, pela contribuição exemplar. Em crônica posterior, voltarei a esta mesma questão, considerando outros aspectos.
ExcluirCom certeza, qualquer dia desses, teremos ocasião de conversar pessoalmente a respeito.
Forte abraço,
Fernando